12
Abr

A VIDA NÃO TEM CONTRÁRIO

«Nascer é o oposto de Morrer, mas a Vida não tem contrário.»
A Vida é o espaço entre as duas margens do rio: nascimento e morte, morte e nascimento.
Há que atravessar, porque a Vida é fluxo cíclico, em ambas as direcções.

Ressurreição é ressurgir: voltar à Vida.
Depois das duas Luas anteriores, a da Semente e do Ovo, que nos trouxeram Ostara na celebração do Equinócio de Primavera, temos agora o retorno extensivo da Vida Verde.
Como retorna? Ressurecta: cada planta desponta como um falo vigoroso, distribuindo pólen e garantindo a disseminação da Vida. A mitologia viva do Homem Verde vem precisamente daí: da Vida Verde vegetal que se ergue do chão aos céus, ancorada na Terra mas seguindo o chamado ancestral do Sol e das águas da chuva.
O Céu penetra o ventre da Terra com o Fogo Solar e o seu sémen de chuva; a Terra vai parir o Senhor do Bosque, Senhor Carvalho, Deus Veado; que dará o seu sémen para a continuidade da Vida animal bem como o seu pólen e semente para continuidade da Vida vegetal. Retornarão à Terra Viva, e no seu ventre, garantirão a Vida que é e que será.
Isto é relação, é sexualidade, é Amor, é respeito, é inter-conexão. É consciência viva, dançando(-nos).
Na Espiritualidade que me chama e ensina, a da Terra Viva, a ascensão dá-se de dentro do chão: é quebrada a casca que contém a semente para que possa germinar, rasgar a Terra e abrir-se, expondo-se a crescer, sentir e dar-se.
Retornar à Vida é o que acontece na Natureza, desde sempre, ciclicamente.
Ver este milagre a cada ano relembra-nos a esperança essencial de guardar os ramos vivos nas casas, como a tradição ensina, para abençoar o lar com abundância.

Quando era muito menina, a minha Madrinha Avó levava-me à igreja de São Francisco de Assis, uma incrível igreja barroca entre a Madredeus, Alfama e o Alto de São João no coração da velha Lisboa. Nessa altura, eu já sabia que para mim era diferente a fé. Nunca fiz as orações cristãs e a minha Madrinha sorria ao ver-me fechar os olhos na missa e murmurar o nome de todas as plantas e animais que conhecia. Diante dos meus olhos, as estátuas da igreja cobriam-se de pássaros, folhas, flores, veados, lebres, esquilos. Ante os meus olhos, Jesus trazia consigo a Vida das plantas e animais e não lhe entendia nenhum outro propósito maior. Ante os meus olhos, ele sorria e dançava, tirava a coroa de espinhos e colhia amoras das silvas. E cantava enquanto secava as lágrimas.
Não escolhi nem me eduquei para sentir assim, era o que era, e ninguém na família, entre ateus, cristãos devotados e curandeiras tradicionais me tentou convencer ou colonizar o sentir. Dentro do tanto que nos magoámos, é das bençãos que mais agradeço. Se a minha personalidade e comportamentos foram tantas vezes julgados, a minha espiritualidade foi deixada livre para ser o que fosse. E nessa liberdade, fui seguindo sempre.

Tudo isto para escrever um simples texto, que fala dos dois movimentos essenciais da ciclicidade da Terra: ascender e descender.
Ascender entre Solstício de Inverno e Solstício de Verão; descender entre Solstício de Verão e Solstício de Inverno.

Ressureição, ressurgimento, anastasis, começa na coragem de seguir o chamado que não pode ser contido: o da Verdadeira Natureza que através de nós se move e opera.
A semente escuta o chamado do despertar e com coragem, sem saber porquê, como ou para quê, desponta.
A vagem seca da árvore atreve-se a recomeçar depois de tudo ter perdido, porque há um chamado inegável que assim a move e com o qual se alinha.
O pássaro dentro do ovo escuta o chamado do despertar e com coragem, sem saber ao que vai, rompe a casca e atreve-se a existir para alcançar e conter o paradoxo do vôo livre e da criação de ninho.
Cada cria dentro do ventre materno atreve-se a irromper para o mundo exterior, para parir-se há que partir: quebrar e despedir-se porque avançar é o movimento evolutivo da Natureza. É inevitável e incontrolável: a Vida é evolutiva e involutiva; haverá proporcional crescimento dentro e fora. Não pode ser evitado, porque não nos pertencemos por inteiro, mas a uma força telúrica, solar, elemental, universal, espiritual tão mais vasta.

Ressurgir é dar corpo a uma consciência renovada que se por um lado retorna, por outro é a continuidade evoluída de todos os outros ciclos e portanto completamente nova.
E o que diz a ressurreição sobre nós? Que se a Natureza inteira renasce depois de morrer totalmente então também nós podemos fazê-lo, porque essa também é a nossa natureza.
Somos anjos de asas lamacentas, pondo as mãos na Terra e sabendo que o chão é um coração vivo que nos tinge das suas cores e assim nos purifica, sem nunca nos sujar. Que há raízes profundas sustendo cada movimento de elevação, de ascensão e que sem elas flutuamos e divagamos. Mas que até isso será um assentar sementes de alguma forma, só não pode ser sempre, como tudo, porque a ciclicidade tem ritmo variável.

Na Fonte Vermelha de Glastonbury, esse paraíso pagão desde os anos 60, há esta imagem do Senhor Verde: Guardião dos bosques. Está num canto desta Mãe d’Água, rodeado de ramos, bolotas, cogumelos esculpidos, insectos, troncos, flores e folhas. Ao vê-lo da primeira vez, comovi-me. Porque o meu filho pode crescer num mundo onde a referência do masculino sagrado não é um mártir nem um líder bélico, antes um cuidador respeitoso, um cuidador da Vida e todos os seres que a compõem. Também é um guerreiro, também oferece o seu corpo verde à morte, por inteiro, no Outono e Inverno. Mas corajosamente retorna, cobrindo a Terra inteira de Verde, de alimento, de continuidade, de Vida.

Ao mesmo tempo que o Homem Verde cobre a Terra temos também a Senhora, Helena dos Verdes, semeadora que caminha por todas as partes espalhando sementes, orações, curas e histórias por todos os povos. Ela caminha lado a lado com o Senhor do Bosque, aguarda as suas sementes e garante que não faltem em nenhuma parte, do mar à montanha, do corpo à Alma. Ela caminha, semeia, doa, cuida, cura, ama, segue a sua liberdade e a vontade de ensinar autonomia, resiliência e reverência pelos mistérios da Natureza viva, por onde passe.

É este o nosso tempo: o de acolher o paradoxo entre o que foi mas já não é, o potencial que se manifesta e o que será. A flor é o resultado da morte outonal, o chão renovado permitiu que existisse. Mas a flor só existe para que mais flores possam existir, para nutrir e para dar fruto.
Tudo é um caminho.
Ressurgir é deixar o velho e abrir o novo, mas o novo também é o espaço de contacto com a incerteza.
Há que escutar e seguir o chamado, que é inegável, simples, mas não confortável (alguém supõe que seja fácil rasgar chão para existir?!). Há que caminhar, não para chegar, mas para semear, cuidar, doar, curar. A nós a todas as relações.
Ressurjamos do chão, que alimenta e orienta cada passo, acarinhando tudo o que vive, na dignidade da nossa verticalidade que nos nutre de Sol, Céu e infinito. Sempre como a Árvore da Vida: cujos altos ramos ascendem tanto quanto descendem as suas suportadoras raízes e cujo tronco- coração abraça todo o bosque com sombra, sabedoria e alimento.