10
Set

AMADURECER, DECAIR E UM PAR DE MÃOS

Cais adentrando o chão

Pedaços espalhados: algumas arestas cortantes, outras suaves partículas de pó.

Ali ficas, apercebendo-te de todo o caos quebrado.

O coração pulsa, não te moves.

Ainda assim, subitamente, há um par de mãos diligentes que continua fazendo coisas aqui e ali.

As mãos começam a juntar os cacos, a pôr as coisas em ordem pouco a pouco,

gesto a gesto, limpando, varrendo-te do chão onde jazias quebrada e dispersa.

As tuas mãos continuam, porque são as mãos da própria vida fazendo, mesmo quando sentes já não ser capaz de nada.

Como as Mãos da baba Yaga, que conduz os mortos, estas tuas mãos têm duas funções essenciais:
Vão ajudar a inocência dentro de ti, essa que dorme enquanto te sentes orfã, só, perdida.
Estas mãos vão desbravar o mundo, separando sementes de papoila do monte de esterco. Duas pilhas separadas e claramente distintas. Quando a inocência despertar de novo, o trabalho terá sido feito. Parecerá ser um milagre.

A força da Vida age através de nós, atravessa-nos e labora-nos.
Mas vamos à segunda função essencial do par de mãos, que é tornar-te numa anciã avó, até ao teu último pedacinho do teu último osso pó de terra pedra. Essas mãos estão fazendo acontecer o tempo que transforma experiência em sabedoria, sabias?
Simplesmente porque elas sabem como fazer acontecer e deixar que aconteça através delas. Até no não fazer.
Estas mãos não se esgotarão porque sabem repousar e sobretudo porque sabem que toda a gente tem um hábil par de hábeis mãos só suas, para fazer acontecer a sua própria vida. Podemos partilhar gestos mas não podemos fazer acontecer pelos outros.

Mas voltemos aos pedaços quebrados. Pois é, claro que há partes que se perdem ao partir, outras voam, para distantes paisagens durante a varredura, há sempre pedaços que querem tocar o céu, as estrelas, não é? Pois há que quebrar a casca do ovo para ousar o vôo.
Enquanto as tuas mãos te tornam uma manta de retalhos bela e única costurada a linha da vida, tornando os buracos bordados florais, tornas-te uma Mulher única, tecida a cicatrizes e ternas águas.

Estás a jorrar, jovem e velha e incognoscível. E também de confiança, fiel, devocional.

Honra o par de Mãos.

Fazem tanto todos os dias, por ti e por todas as tuas relações.

Assegura-te: que no fim de cada dia as tuas mãos se unem ao teu coração e reaprendem a oração no presente: não a prece escrita por outrém mas aquela prece viva que hoje o Espírito segredou ao teu ouvido, ainda que quebrado.

 

As tuas mãos estão a varrer-te o pó, clareando.
As orações não se esquecem de ti desde que tu não as esqueças que as preces têm o poder de reparar o que se parte e restaurar o afecto.
Não importa quão lento ou quão longo pareça, está acontecendo. Está sendo. As mãos estão continuamente fazendo e sendo feitas, o coração também.

O Amor está continuamente reparando essa unidade feita de muitos, tantos, tantos, tantos pedaços. Esses que cada uma de nós é, sabendo ou não.

Cuida das mãos: deixa-as ser abundantes, tocar, sentir, acenar, criar, carpir.
Assegura-te de que as manténs longe do que as envenena, gestos monótonos de scroll down em écrans onde se sentem inaptas perante as vidas romanceadas dos outros.

Reconhece as tuas mãos e não as tornes no que não são: não te esforces nem um bocadinho para esse fim. Não te entorpeças através dos teus dedos: deixa que pintem. cozinhem, dancem. Mergulha-os em buracos de areia, terra, paisagens sensoriais selvagens e desconhecidas. Se não ousares experimentar, como poderás conhecer?

Oráculos aguardam ser criados através do futuro que as tuas mãos estão tecendo agora, agora mesmo a cada instante. Leva as tuas mãos à Terra Viva, planta e ama e cuida e colhe. Elas são chão, terra, pó fértil, sementes, raízes, lagartas e pássaros. Deixa que as tuas mãos se sujem de vida imaculada. Afasta-as do excesso de asseptização, de unhas falsas que te anestesiam a sensação e te impedem o poder das garras que te protegem quando em perigo. Essas garras tornam-te águia, falcão, coruja, mãe ursa, javali, loba. Não as plastifiques, querem-se indomáveis.

Assegura-te de que as mãos tocam a pele, o sexo, o cuidado dos recém nascidos, as rugas no rosto dos velhos avós. Muda fraldas, que o esterco é a mais potente água benta para nos humanizar na totalidade. A vida é toda ela bela, rica, transformadora. A coragem reside sempre em tocar. Tocar e deixar-se tocar.

Deixa pois as mãos nuas, despe luvas e anéis e acede ao toque.

Assegura-te de que as tuas mãos terminam o que começam,

largam o que não pode ser terminado, sabem parar quando é necessário repouso e sabem recomeçar mais tarde, no tempo oportuno. Assegura-te de que as tuas mãos sabem pedir ajuda de outro par de mãos e oferecer ajuda quando é possível e necessária. Para cuidar, criar, apoia mutuamente e em reciprocidade.

Mãos nuas, mãos selvagens, mãos de velha sábia. Mãos que guiam os mortos com reverência e carinho, mãos que riem, abençoam e transformam o caos em ninho. A vida pulsa aqui, nestas palmas de mão raíz e visão, até o teu coração. Por isso: o que quer que tenhas feito, não feito, desfeito ou refeito, no fim de cada dia simplesmente reconhece que as mãos são a voz do coração e escuta: há uma oração viva, única e essencial em cada lugar, seja qual for, sempre. Parte dessa oração és tu, quando te deixas ser a dádiva que a vida te torna para ti mesma e para todas as relações da teia viva, humana e não humana, que te abraça.

Artigo para a revista Vento e Água