SOLSTÍCIO DE INVERNO: CEGUEIRA LÚCIDA
O Solstício de Inverno tem vários nomes: Yule, Alban Arthan, Natal.
Será talvez um dos mais antigos e vastos fenómenos de apropriação cultural de sempre, ou talvez seja antes um claro exemplo da nossa mestiçagem complexa de tradições e formas de ser.
Entre Samhain, a noite da Boa Morte e o Solstício de Inverno, a noite de parto e (re)nascimento da Luz solar e da vida vegetal, verdejante, atravessamos um tempo de profundidade e aprofundamento; adentramento e enraizamento caracterizados por um mergulho profundo no inconsciente e por isso mesmo pela incapacidade de controlar as circunstâncias que nos envolvem.
Ora vejamos: ninguém consegue controlar quanto tempo durará a chuva, a névoa, o vento a trovoada. Para os povos antigos, o tempo de parto era também impossível de controlar.
Esta fase de cerca de um mês e meio, ou uma lunação e meia corresponde a cerca de uma quarentena (40 dias), um período de tempo essencial na recuperação e regeneração de doença, também na antiguidade.
E é claro, que, tal como o parto não termina no nascimento do bebé e já está, o Solstício não se completa a si mesmo, assinala uma transição gradual onde as forças da Natureza e dos seus três mundos: céu, superfície da Terra e Interior do subsolo, comunicam com uma qualidade diferente da anterior, tecendo a continuidade e renovação da Vida.
Para os nossos antepassados pagãos longínquos, era claro que o que é ecológico é fisiológico e portanto psicológico. Quer isto dizer que o que acontece na Terra afecta o corpo físico e por isso a nossa percepção mental e espiritual. Não temos como fugir a isto.
Para Carl Yung, não é o inconsciente que está no consciente, como sombra; mas é antes do inconsciente, que é um mar, que emerge a consciência como uma ilha, constantemente banhada pelo tanto saber dessas águas, individuais e colectivas.
No Solstício, as árvores são enfeitadas de adornos que reflectem luz, de forma a convidar a luz a regressar e penetrar o chão para assim despertar a semente. Também eram tomados preparados herbais para alterar o estado de consciência e assim permitir uma comunicação ainda mais próxima com estas forças inconscientes e traze-las à visibilidade, para desde o sonho semear a nova realidade futura, de si mesmo para o mundo. Acima de tudo, convidamos com humildade este retorno da luz mas também o encontro com a fértil escuridão sem a qual a luz de nada serve. Assumimos também, ao chamar esta relação à vida, um compromisso claro em estar presentes e fazer o que esteja ao nosso alcance para que este encontro essencial entre Sol, Terra e água da chuva aconteça de forma a que a Vida renasça.
Temos aqui várias forças em acção: há de facto o parir, mas há o ser a parteira (o), há o Pai, a Mãe e a nova criança, há a renegociação destes papéis nas nossas famílias nucleares e dentro de nós para podermos assumir estes lugares para com todos os seres, num serviço maior do que apenas a nossa história e circunstâncias. E há, acima de tudo, que aceitar que o parto também parte, tal como a semente se quebra para poder germinar, e que partir é urgente!
Temos que partir este fascínio pela luz e pelo brilho, pelo sucesso, pela produtividade, pelo lucro, pela iluminação e comprometer-nos com o chão, Terra Viva, concretamente.
Quando pari o meu filho, de cada vez que fechava os olhos, via o meu Avô, que havia falecido um ano antes. Vi-ao claramente, na sua mortalha. Abria-a os olhos para não o ver e evitar o que este confronto me trazia.
Percebi quantas vezes este abrir os olhos serve mais para distrair do que para orientar; cada vez que abria-o os olhos já não via o meu falecido Avô, mas a dor aumentava brutalmente. Então decidi vê-lo, chorara a sua perda e o receio de poder morrer eu mesma ali, ou o meu filho, a dar à Luz.
Nesse momento, que não faço obviamente ideia de quanto durou, mas visto de agora, só posso chamar-lhe momento à falta de melhor palavra, deixou de importar. Eu poderia morrer para parir, capaz ou não era o que eu tinha a fazer. Então dançámos juntos: o meu falecido Avô, o meu falecido Irmão que morrera no parto, as falecidas tias e tios que as minhas Avós pariram e não sobreviveram e sobretudo, a força de parir para cumprir o que, além da minha vontade individual, precisava de cumprir-se. E sem poder apressar, nem afastar a dor ou a sensação de literalmente me partir por dentro, pari entre sonhos lúcidos, olhos fechados e de pé.
Mas importante é dizer, que havia amparo para que assim pudesse ser. Um conjunto de pessoas comprometeu-se em ser apoio, suporte, testemunhando sem interromper nem tentar melhorar e apenas permitindo o desenrolar do tempo, do corpo, da psyche.
O que, neste Solstício me leva a perguntar :
Somos capazes de nos comprometer em honrar o que não podemos controlar?
Somos capazes de aguardar sem interromper e sem tentar melhorar, confiando que a nossa presença já é suficiente para que o processo aconteça naturalmente da melhor forma?
Somos capazes de nos despir da pressa, da concretização, para abraçar a mestria da incerteza?
Somos capazes de esperar até por nós mesmas quando ainda não estamos prontas, porque a Vida não encurta caminhos para ser confortável mas estimula resiliência?
Assim, quero aqui evocar Luzia, celebrada a 13 de Dezembro.
Que curiosamente é a Senhora da aldeia do meu Avô acima citado e a quem fiz a minha primeiríssima dedicação ainda menina, sem saber exactamente o que fazia.
Há tanto que podia dizer acerca d’Ela, mas ficam breves linhas.
Poderemos chama-la por outros nomes pré-cristãos, se assim sentirmos: Ataégina, Berchta, Brigid, Lucefécit, Lucina e até Luceféria; Ewá na Umbanda.
Luzia, para mim, diz tudo.
Ela é a parteira, de um parto que então começou, por volta de 13 de Dezembro e que concluirá dia 25.
Ela é a guardiã deste pós parto que seguirá até 1 de Fevereiro, nas Candelárias, depois de terminada a quarentena do parto sagrado.
Ela arrancou os olhos do rosto, porque não queria casar, e preferiu destituir o seu rosto de beleza e colocar a beleza nas suas mãos, para a colocar em tudo quanto tocasse.
Ela que honra o seu caminho espiritual sem desvios nem atalhos, em liberdade e responsabilidade, na vertical e horizontal das sete direcções.
Ela cura o olhar, e é a Senhora da Visão: mas só quem se permite cegar e deixar o hipnotismo da Luz pode ver o que se revela na profundidade do tempo, da Terra, da Alma.
Ela é quem orienta os que se perdem no caminho, os que não conseguem prosseguir: os indecisos em nascer ou morrer, como as partes indecisas de nós em avançar sem levar o passado como referência para o futuro.
Ela é a Mãe de todas as Bruxas, Magas, e como parteira é invisível mas de presença essencial.
Ela é a Mãe da Mãe.
Ela não tem outro credo ou religião que não a cura e o fazer melhor como oração maior.
Que não se ilumina porque a luz que traz dentro basta e a cegueira não só não lhe é impedimento como é mestria, para não se iludir e manter focada no essencial.
Ela tem o manto da Estrêla do Norte, a estrela d’Alba que nos traz ainda a referência céltica de Alban Artha, a constelação das Ursas maior e menor, Mãe e Filha; as que guiam o pastor na noite escura e sem pressa, nos asseguram que a manhã e o amanhã chegarão. Estrêla do Norte, que guia os marinheiros em mar alto, quando nada mais se avista como orientador. Que mesmo que não a vejamos, nos vê sempre e olha por nós.
Ela convida a ser simples, a não depender de circunstâncias pois trazemos nas mãos a capacidade de criar o bem maior para nós e todas as nossas relações.
Ela pede-nos compromisso, serviço ao mesmo tempo que revela a nossa natureza compulsiva e nos oeferece apoio para curar em profundidade e fazer o que temos que fazer.
Luzia, talvez nunca tenha sido tão necessária como hoje.
Aqui fica a oração/ encantamento que lhe canto, com humildade e devoção. Espero que vos toque tanto quanto a mim me toca.
LUZIA: DEDICAÇÃO (E)TERNA
Senhora deixei apagar o fogo
Senhora deixei acabar o pão
Senhora não vejo nada de novo
Senhora já se me esgotou o chão
Leva-me daqui
Ensina-me a ficar
A reconstruir
Quando me cansar
Luzia dos meus olhos tão fechados
Luzia do sonho por caminhar
Luzia da cura mais profunda
Luzia caminho para te honrar
Leva-me daqui
Ensina-me a ficar
A poder nascer
Depois de me findar
Luzia minha oração é fogo
Luzia minha oração é pão
Luzia sou eu que me páro e movo
Renasço como Alma deste chão
Leva-me daqui
Ensina-me a ficar
A criar raíz
Quando desesperar
Luzia Senhora da Luz que cega
Senhora da primordial escuridão
Luzia do rio que jamais se seca
Correndo como leite neste chão
Leva-me daqui
Ensina-me a ficar
A criar visão
Depois de me cegar
Tu que trazes a Luz do negro ventre
Oh Mãe das Magas da Imensidão
O meu olhar é cego e já está gasto
Mas vivaz é a tua visão
Leva-me daqui
Ensina-me a ficar
A criar visão
Depois de me cegar
Foi na encruzilhada que me dei
Toda eu a ti sem saber razão
Chamado ancestral me traz aqui
Pertence-te todo o meu coração
Leva-me daqui
Ensina-me a ficar
A dar passos seguros
Quando a visão me falhar
Seja eu a tua voz e teu olhar
Seja eu teus passos e tua mão
Seja eu o dia e noite que se abraçam
E o alento que cura a solidão
Leva-me daqui
Ensina-me a sonhar
A criar caminho
Quando me desencontrar
Quando nasci já toda eu era tua
Quando morri a ti me devolvi
Renasço como o Sol e como a Lua
Sibila da tua vontade aqui
Leva-me daqui
Ensina-me a ficar
A ser a tua voz
A saber o Curar
Senhora deste fogo, desta Alma
Que revela e oculta em equilíbrio
Traz na justa medida ardor e calma
Abre o parto da Alma por inteiro
Revela este mundo verdadeiro
Leva-me daqui
Ensina-me a ficar
A ver a verdade
Sem precisar de Olhar
Senhora toda eu pertenço a Ti
És o caminho e a encruzilhada
Senhora toda eu pertenço a ti
És o caminho, a Vida e a entrada
Leva-me daqui
Ensina-me a ficar
A cuidar de mim
Para assim te honrar
Senhora toda eu pertenço aqui
Senhora minha Mãe e minha Avó
Luzia, Luzia, Luzia que nunca me deixas só
Luzia, Luzia, Luzia que jamais me deixas só
Que seja então, uma travessia e não uma noite.
Um processo de transformação e não uma pressa de receber e um descartar sem integrar: haja a coragem de permanecer o tempo necessário, de chorar de medo por este futuro incerto, de rever posicionamentos e escolhas. Porque todos os sentires verdadeiros são necessários e a Terra também nos pede para chorar o tanto que lhe dói. Estas lágrimas que impedem de ver também limpam o caminho e já não podemos entreter-nos mais.
Chegou a hora de caminhar, nesta cegueira de não saber se ou onde chegaremos, nem quando, nem como: Mas de levar nas mãos a vontade de criar o bem maior, mesmo se a morte nos levar enquanto o fazemos, e isso, é o presente de cada dia.
E aqui, o canto simples:
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