10
Set

CORPO TERRA TEMPLO

A relação Terra- corpo- Ser como base da acção e pensamento

« Matéria é energia, espírito é energia, tudo é energia» Starhawk

Uma das mais profundas feridas que trazemos é a corporalidade.

Desde que nascemos que o nosso corpo é tratado como estando inapto para dar-se à luz, ter capacidade de ser saudável por si mesmo, ter permissão para expressão livre e espontânea de gestos, emoções, ter espaço para ser amado na sua singularidade e na sua relação sensorial e sensual consigo mesmo, com outras pessoas e com a própria Natureza.

Estar no corpo pode trazer uma sensação de limite, impossibilidade, frustração perante o cansaço, a fome , o desconforto, impossibilidade de seguir a visão.

Mas, terá sido sempre assim?

Até que ponto os nossos códigos sócio-culturais e religiosos investiram no antropocentrismo? Alienando o geocentrismo, impossibilitando a experiência corpórea de ser plenamente consciente, dissociando-nos da total e permanente conexão à Natureza Mãe, da qual somos parte enquanto Anima: alma e animal. Empurrando-nos para uma busca permanente baseada num desencontro impossível: sempre estivemos aqui, parte viva do mistério da Existência. A imperfeição sendo a transformação acontecendo perante os nossos olhos jovens. Cada um de nós única, inigualável e essencial obra da Natureza Mãe.

Em toda a nossa cultura há ainda um eco profundamente vinculado à idea de separação entre espírito e matéria. Como neo pagãos recebemos esta herança por aculturação e poucos de nós a questionam.

Será verdade que temos um corpo desprovido de espírito, que é um mero veículo?

Quando referimos a visão, onde acontece a visão? Porque a visão é corpórea e é justamente essa qualidade que nos permite entrar no campo da epi-genética e ter o poder de alterar a matéria base de que somos constituídos, elaborando-nos numa relação biológica profundamente consciente ( embora não necessáriamente racional). Isso é prática alquímica e mágica profunda. Estar tão presentes que somos testemunhas da emanação da força da existência que nos atravessa, cria e desconstroí e pela vontade (maior que o desejo e até potencialmente impessoal), estimular o poder inato de elaborar um sentido comum, um bem maior.

Somos parte viva de um planeta vivo.

Pertencemos à Terra, a Terra não nos pertence.

Pertencer ao corpo e à Terra devolve-nos sentido de presença, a certeza de que somos feitos para os tempos em que vivemos. A Terra é casa, caminho, alimento. Dela nos erguemos, nunca estamos fisicamente pairando sobre ela, estando sempre literalmente ligados a ela quer estejamos ou não plenamente conscientes deste facto.

« O sapato é o princípio da guerra»

Ouvi este adágio na Índia do norte. Recordo-o muita vezes como contentor de muita e expressiva sabedoria.

Quando deixamos de sentir o chão que pisamos, deixamos de conhece-lo; deixamos de caminhar cuidadosamente, passamos a pisar seja o que for. O sapato, neste contexto, é também um mecanismo de diferenciação económica. Porque a partir da relação com objectos externos que não o corpo e a Terra em si criamos facilmente falsas ideias hierárquicas e esquecemos que todos caminhamos, com pés semelhantes, na mesma Terra que nos sustenta a Vida e que somos muitíssimo menores do que Ela, em tempo de vida como em experiência.

Se nos foram úteis templos, resta-nos agora poder reivindicar que o sagrado é a Vida no seu movimento cíclico de nascimento- crescimento- maturidade- decadência- morte – transformação- regeneração- nascimento. Este movimento supera a experiência enclausurada em quatro paredes e pede comunhão directa com a Natureza no seu estado selvagem e sazonal.

Somos um templo vivo, parte de um templo muito maior que é a Terra, ela própria parte de um templo infinitamente mais amplo que é o Universo. Ao entender a Terra como sagrada e tudo o que na Terra vive como igualmente sagrado a nossa relação de inter-dependência torna-se evidente, as nossas escolhas naturalmente mais éticas e compassivas sem perda alguma de liberdade mas em ampliação de perspectiva.

Outrora Magos e Magas do Ocidente foram obrigados a fechar-se no segredo bem guardado de salas e caves, tornando os seus cultos cada vez mais simbólicos para que não fossem mal-entendidos ou susceptíveis de punição feroz. A Terra tornou-se, aos poucos, um lugar associado ao sofrimento, ao pecado, à dureza. Os heremitas e as Bruxas guardiãs de locais selvagens foram desaparecendo com eles, as suas práticas não escritas fundindo-se com o vento, a água, a pedra (por resultarem de uma comunhão elemental constante e espontânea, impossível de conter em palavra escrita ou padronizada por hábito).

Hoje é urgente reclamar esta espiritualidade empírica, baseada no sentido profundo da fisicalidade que nos permite sentir e devolve à experiência concreta a qualidade de poder elaborar-se a partir do estar vivo mais do que o pensar-se vivo. Se perdemos a conexão consciente aos sentidos perdemos a capacidade de vínculo afectivo e efectivo, perdemos a clareza acerca do que é benéfico ou não para nós e para os outros, soberania sobre a nossa saúde e sobre a nossa espiritualidade, que é uma relação livre e selvagem, subjectiva, com a Vida de que somos parte. Podemos também, facilmente, cair na dicotomia de chamar a Mãe Terra em palavra ( ou símbolo arquétipo) sem jamais entender os seus processos orgânicos como elucidativos claros dos processos da Vida e da Alma, bem como nos pode passar despercebida na acção diária a urgência de alterar o nosso estilo de vida para que a Vida maior possa continuar a existir sobre este Sagrado chão pulsante que nos acolhe e que de novo nos reclamará.

Evocamos a serpente, mas estaremos preparados para vê-la frontalmente? Deixa-la enrolar-se à nossa volta sufocando as nossas certezas? Estaremos disponíveis para mudar de pele como ela e permanecer nús na escuridão até que a nova pele lentamente se refaça? Damos este tempo aos nossos processos físicos (doenças) e psico-emocionais de transformação? Teremos reclamado a ousadia de viver Invernos e Outonos necessários para que a Primavera seja fértil e renovada? Ou como a cultura insiste em deseducar, buscamos inalterável juventude e felicidade, deixando definhar o espírito vivo de cada uma das nossas células por ignorarmos a sua presença em nós? Crescer ou morrer? A velha pele sufoca-nos a nova não é formada senão na quarentena da vulnerável espera e no não saber.

É essencial não abrirmos mão da resiliência que em nós é criada a cada encontro soberano com o lado desconfortável da ciclicidade. A imobilidade de um conforto alienante é a única verdadeira morte, com hábitos desajustados da Natureza violamos a nós mesmos na profundidade de quem somos e de porque estamos aqui.

Ao sentirmos e claramente percepcionarmos a Terra como único templo real e o corpo como sendo parte viva da Terra Mãe retornamos a um sentido de irmandade entre géneros, entre idades, entre qualidades, entre todos os seres vivos e manifestações orgânicas que da Terra fazem parte. Isso é cultivar sustentabilidade, na medida em que neste círculo todos suportamos e somos suportados, simultâneamente. A Terra é a grande criadora e ao sabe-lo fascinamo-nos menos com as nossas obras humanas e podemos ocupar um lugar de maior equilíbrio na linhagem da Vida bem como de muito maior responsabilidade e equilíbrio.

A sazonalidade da Terra existe no corpo: o bebé na qualidade resiliente de semente vulnerável e tão potente; a ancestralidade do ancião, como a velha raíz torta e já casa de fungos que a vão dissolver e devolver à Terra da qual emergiu. Depois de nascer construimos um caminho até à verticalidade, e daí um caminho de retorno até ao chão, novamente. Partilhamos este trajecto com tudo o que vive.

Não é a Alma que reencarna, é a Alma que é a própria carne, e que ao desfazer-se impregna o chão e os céus de memória viva em transformação. Somos pó semente, composto de milhares de anos e milhares de seres. Que maior beleza do que a de nos oferecermos de volta a esta matriz à qual sempre pertencemos, a partir do exercício constante de honrar e criar sacralidade, regeneração, equilíbrio e afecto (aquilo que nos afecta e afecta os outros, amorosamente)?

Somos pó das estrelas e pedras minerais que temos nos ossos. Tornamo-nos os animais e plantas que ingerimos, literalmente o alimento substancia a matéria do corpo e por isso a qualidade de quem somos. Esta é também parte essencial da matéria viva da nossa ancestralidade: tornamo-nos os receptáculos sagrados de tudo e todos os que para nos alimentar ofereceram as suas vidas.

Sendo a nossa descendência a qualidade com que digerimos alimento como como emoção, pensamento e ação.  O sentir emocional é uma sensação que nos dá sentido de vida; o pensamento emana da conexão profunda entre sistemas físicos cuja estrutura é alicerçada em profunda subtileza.

Há no visível como no invísível MATER, presença emanente e transcendente da Mãe enquanto lugar de onde vimos, onde somos e para o qual nos movemos e retornamos. Tal como o rio jamais se aparta da Terra na sua corrente fluída ou o céu e Terra jamais desenlaçam o seu circular abraço também nós existimos qual árvore, de baixo para cima, com tão mais expansivos ramos quanto mais fortes sejam as raízes.

O templo, a Arte não é uma obra que transcende o ser humano. O ser humano é constantemente transcendido pela força potente, selvagem e misteriosa da Natureza Viva. O Sagrado é imanente e transcendente.

« Somos a gota no oceanao e o oceano na gota» J. Rumi

O verdadeiro templo é a Terra viva e o Corpo Vivo nela.

De que forma sabe-lo altera a nossa percepção e atitudes? Como altera as nossas práticas? Como nos devolve sustentabilidade (pessoal, comunitária, eco-sistémica), adaptabilidade, resiliência, cooperação, pertença e ao mesmo tempo individualidade? Como nos despe de susbstâncias abstratas, idolatrias, segmentações? Sendo um templo vivo numa Terra viva, como cuidamos de nós e de todas as nossas relações, profunda e verdadeiramente?

Deixo as questões, porque o importante não é solidificar respostas mas poder praticar a peregrinação constante da jornada que é pessoal, comunitária, planetária e cósmica.

Iris Lican, Novembro 2017

Artigo para a revista Ophiussa