16
Out

DAR É PODER

Poder dar é uma benção.

Poder dar abre espaço para a abundância, porque quem tem dá e quem recebe passa a ter.

Sempre que me vejo entrar no quero isto ou aquilo gosto de pensar: o que posso dar? O que posso oferecer? O que é que já tenho e posso partilhar?

Como muitos sabem, eu sou descendente de beirões. Ora, o meu Pai chegou na noite passada com a carrinha cheia das bênçãos dessa Terra potente que é a Beira Baixa.

Tenho muito em comum com o meu Pai:

– uma resiliência implacável

– uma vulnerabilidade profunda e um sentido de ética estrutural

– um mau feito do demo, quando o momento assim evoca

– uma teimosia prodigiosa e uma rebeldia selvagem que pode roçar o insuportável

– um profundo Amor por árvores que para mim é bosque e para ele pomar

– uma ligação inquebrável com a família, mesmo quando o caminho foi despedaçante

Fui educada por pais e avós beirões e madrinha transmontana. De todos eles, só o meu Avô materno e a minha Mãe não passaram fome e frio extremos, sendo que todos eles criaram e melhoraram profundamente a sua vida e das suas relações na construção do seu caminho, mesmo se não foi fácil e muito menos perfeito.

Fui educada a não desperdiçar nada, a dar o que se pode estragar porque nos sobra, a transformar para preservar. A beijar o que apodreceu e se deita fora, agradecendo e abençoando para que de novo se torne vida.
Ficou-me um traço indelével de criatividade indomável e uma capacidade de laborar prodigiosa, que precisa de ser temperada com pausas. Também deixou o medo da falta, que é amparado e se cura com o fazer das mãos e o amar o que se faz, mesmo que seja preciso aprende-lo.

Cresci entre filhozes, alheiras feitas em potes de barro num quintal de Lisboa, broa de milho, pão de centeio, folares, compotas.

Na casa da minha Avó moraram todos os da família, até quem não vinha do lado dela. Tinha passado fome e abria sempre a mesa aos vizinhos. Vendeu tanto peixe e roupa quanto os que ofereceu.

E conto tudo isto porque, vejo todos os dias uma verdadeira febre de abundância mas muita falta. Muita falta de partilha, de espaço comum: comunhão. Nós uns com os outros, entre famílias, e com a própria Terra que tanto nos dá e tanto lhe retiramos quando tantas vezes a falta vem do coração e é de afecto, tempo, simplesmente doçura e colo.

Há que conseguir, mesmo se pedindo ajuda, dar-nos e aos outros estas qualidades essenciais, ou a busca nunca cessa e vai-nos afastando tanto de nós mesmas no esforço, que podemos perder-nos totalmente antes de encontrar seja o que for.

Há que curar em fogo brando a muita falta de gratidão ao tanto que se tem e o que em nós seja pouca capacidade de transformar o pouco em muito. Para isso, às vezes é preciso pausa, descanso e recomeçar.
A cozinha fala-me sempre disto, e as minhas ancestrais vêm sempre lembrar que o cozinhar é a alquimia da Alma e nos empodera porque estamos a criar e a nutrir a Vida que vivemos e queremos viver, em comunhão com a Terra e os seus tempos.
Cresci com todos os tons da cozinha: cozinhados bravios de gente bem zangada que é tempestade em alvoroço, cozinhados com rosários de oração, cozinhados com canções, cozinhados a muitas mãos e muitos risos e muitas lágrimas.
Ontem, eu, o meu filhote e os meus gatos celebramos a compota. Faze-la foi tão ou mais delicioso do que come-la.
Criar momentos comuns é aquilo que nos permite caminhar juntos na Vida e se não se cultiva nunca se irá colher. Às vezes, é preciso parar a pressa e entrar no tempo de estarmos juntos sem preocupação, em momentos simples, sem esforço e sem recorrer a nada senão aquilo que já está presente. Brincar educa ( e re-educa) para a Vida, o fazer de que se disfruta é uma das maiores dádivas que podemos ter e oferecer.

E para que também eu possa partilhar, aqui vão duas receitas simples mas nutridoras, daquelas que dão colo à Alma: com maçãs e figos das terras do Roqueiro à Roca : que o fuso sempre nos guia ao tecer o fio do destino.

Compota de figos e noz:
Por cada kg de figo: juntar 100gm de rapadura
Sumo e raspa de um limão 125ml de água
30gm gengibre fresco ralado
10 gm de raíz de curcuma fresca ralada
2 colheres de sopa de canela
alguns punhados de nozes
Mistura qb de noz moscada, cravinho, anis estrelado, alecrim, tomilho
– Lavar os figos e cortar as pontinhas, depois cortar em quartos
– numa panela ou tacho largos colocar todos os ingredientes, misturar bem com a colher de pau
– vai a lume alto até ferver, mexendo sempre. Quando levantar fervura baixa-se a lume brando, deixando ficar por 1h30  e mexendo a cada 10 minutos
– ao sair do lume colocam-se as nozes partidas grosseiramente
– escaldam-se os frascos e coloca-se a compota ainda quente, fechando bem. Viram-se de cabeça para baixo 12h, para maior durabilidade.
E saboreia-se, com gratidão.

Crumble de Maçã e amêndoa:
– partem-se cerca de 6 maçãs médias aos quadrados ou fatias, com o cuidado de guardar os caroços para semear no bosque e canteiros nossos, como da cidade
– barra-se um tabuleiro com óleo de côco, coloca-se a maçã e:
– uma chávena de chá de flocos de aveia
– uma chávena de chá de amêndoa laminada
– sumo de um limão
– gengibre fresco ralado
– 1 colher de óleo de côco
– 1 colher de chá de canela
– meia colher de chá de noz moscada
Mistura-se tudo envolvendo bem e vai ao forno, 30 minutos a 180º

A colher de pau traça os mistérios da cura. Que a tragamos connosco para nos lembrar: que cozinhar a Vida é criar abundância e nutrir possibilidades.
Assim como a farinha se transforma em pão, se transformamos o coração.

Na foto: o crumble e a compota, cacau quente com leite de aveia, a mesa e janela da cozinha, a hera, pedras da Panasqueira, serra da Freita, Sintra e Cornualha. E claro: a Bast, a gata de neve e mel, que veio ver o que estava a acontecer. E três medronhos pequeninos, cuja árvore, o Medronheiro, continuará florescendo resilientemente até Dezembro, mesmo no frio e escuridão crescentes.
Na Adraga, junto ao Cabo da Roca, com figos e maçâs da Aldeia do Roqueiro, Beira Baixa