05
Abr

DELICADEZA É ROBUSTEZ Ou A BOSTA COMO CAMINHO TÃO SAGRADO

Onde está a potência da prática espiritual em nós?
Para mim, está no ajoelhar perante a Bosta e chamar-lhe Mãe Sagrada: porque até a merda será valiosamente compostada em fértil chão, providenciando abundância para tudo e todos os que a seguir virão. Isso é força Divina.

Porque preciso de uma prática espiritual?
Primeiro porque não é uma escolha, nasce connosco a forma de sentir a Vida e a Terra.
Mas ainda que assim não fosse, reduzir a experiência humana a mera estética e intelecto seria uma insuportável prisão.
A Natureza, o Amor, a Arte, a Magia são as formas que temos de ir fazendo sentido, sendo parte do sentido da vida ao mesmo tempo que o criamos.

Num tempo de tanto trabalho sobre empoderamento pessoal, afinal o que é poder?
Poder é ser capaz de perguntar, a cada momento e situação : o que posso fazer, aqui e agora, de útil, de são, de bom? E fazê – lo.
A fé ou está na acção diária ou não serve.
Nada é estático, muito menos o sentir, o estar, o fazer e sobretudo, o ser.
Por isso, mãos à obra de transformar ao mesmo tempo que a vida nos transforma.

O Baltazar Molina e a Sara Baga, no liceu, chamavam-me Sally, que é o nome da personagem da foto, do filme Nightmare Before Christmas do Tim Burton.
Ontem estava a reflectir sobre símbolos pessoais e como nos falam de quem somos e dos nossos valores.

Vi este filme pela primeira vez quando tinha 15 anos. A Sally é uma herbalista feita de folhas secas e retalhos. A dada altura, salta de uma janela, rompe-se totalmente e volta a costurar – se a si mesma.
Tudo porque quer levar alimento a quem ama, e vai cuidando com Carinho de todos os que encontra no seu caminho, desde que não a privem da sua liberdade.
Ela tem uma natureza disruptiva, vê tudo de uma outra forma.
Eu era/sou isso mesmo, uma delicada e robusta boneca de retalhos, reclamado liberdade e costurando-se a si mesma ante tantos rasgões que a vida trazia/traz.

Este momento também é precisamente sobre isto : cair, romper – se, aprender a recosturar-se a si e a um mundo envolto numa forma de estar com hábitos de vida que estão a morrer pela sua insustentabilidade. Já o fiz mil vezes sempre de formas inesperadas, muitas mais aguardam.
Mais do que o vicejar exuberante das flores e grinaldas encontro próposito no composto, nesse momento de morte e fermentação encontro a Mãe dos entre mundos na sua tão estranha e tamanha beleza. Canto aos ossos e galhos secos que se tornam pó até que novamente sejam pele verde viva. Sem nenhuma pressa, sento-me com a morte e o que decai. É um lugar que conheço, honro e aprecio, esse da destruturação.
Eu também morro nele, leva sempre partes de mim inesperadas. Traz lutas, lutos, raivas, desassossego e desorientação.
Agora, sinto que há um luto a ser feito, mas sobretudo de muitas partes de mim que foram educadas e auto criadas para um mundo que morreu.
Há lamento e há também e sempre, muita curiosidade ao novo. Nada é somente perda, mas a perda precisa de ser chorada.
Dentro de mim pode haver momentos de desorientação, perda, raiva, dúvida. Mas lá fora os pássaros cantam, a serra floresce como há décadas não acontecia e mostra claramente, que o que de mim morre é composto.
Para a Terra tudo é alimento, até a morte. Um dia também serei devorada,  será uma honra ser este Sagrado vivo chão na minha hora.

Agora sou eu que me devo adaptar, honrar os antepassados longínquos que passaram a vida a adaptar – se, atravessando selvas, bosques, partos e partidas.
Em tudo há renovação e começa sempre na morte.
Sinto sempre tudo tão profundamente que tudo me trespassa.
É aí que a Alquimia acontece, nessa sensibilidade cortante lembro :
Eu vim para servir a Vida: nascimento, florescimento, decadência, morte, compostagem, transformação, renascimento.
Seja de que forma for, seja porque caminho for, seja com quantos retalhos for: o meu compromisso é o Amor, e continuar a semea-lo sobretudo quando me seja mais difícil.
Mesmo se me desfaço e refaço milhares milhares de vezes.
Eu vim para ser parte útil do Grande Mistério. Estar ao serviço acontece sobretudo quando as nossas condições pessoais se findam e a incondicionalidade tem espaço para nos revelar quem somos, verdadeiramente.

Hoje fui aos Capuchos fazer orações, há ali um saber viver que me faz falta lembrar, nos ancestrais daquele lugar, vivendo isolados na natureza dedicados à cura, terra, devoção e comunidade.
Preciso de aprender essa maneira de viver e reinventar para o que é viver aqui e agora.
Aos retalhos, mas totalmente presente.
Prontinha a tornar-me uma manta de patchwork, daquelas que abraçam a pele que com paciência se deixa renovar pela sabedoria natural do tempo .