ELA GERA SOZINHA
Ela concebe sozinha em relação , com a força brutal da erva daninha em comunhão com o chão.
Ela concebe como a neve, que é densa, que é fina, que é pesada, que é leve.
No frio glacial germina as sementes caídas do carvalho, da azinheira, de tantas bravias e bravas árvores e plantas que na sua resiliência selvagem incontrolável cobrirão a Terra inteira. No ventre quente debaixo da neve e chuva fria já ousam escutar o chamado da vida que as convoca a quebrar a casca protectora e estender os primeiros brotos que serão raízes.
Como se tem água quando gelam as fontes? Derrete-se neve no braseiro, no pote de ferro fundo. Com paciência e dedicação. Há que saber aguardar o tempo do gerar.
Assim se derrete em leite o coração materno, em misto de dor e devoção.
A Senhora da Concepção fala da capacidade milagrosa de dar vida a partir de si mesma, enquanto via de passagem da energia que somente quando nos atravessa se manifesta e corporifica.
Quem retirou o sexo à concepção, retirou à mulher a liberdade de maternar com ou sem par. Retirou à Terra o direito de gerar livre e sem arado. Mas não conseguiu, porque nunca ninguém domará o cio.
Pois filhos e filhas da Mãe somos todos e todas. Sem excepção. E se temos dúvidas de quem será o pai, a mãe pois que não, Ela é inquestionável. Os filhos são das famílias, das tribos, das paisagens, não apenas dos casais. Os filhos são da Terra e do Céu, os seus primordiais pais.
No entanto, a gestação é toda ela feminina, interna, acontecendo num espaço de manifestação íntimo e invisível aos olhos: o das entranhas. Tal como esquecemos o que sob a neve germina e a água que flui livre sob a superfície gelada, assim esquecemos a vida uterina enquanto não nascida mas já sendo gerada.
A morte e o nascimento transformam-se um no outro sob o nosso olhar, há que honrar a invisibilidade e o mistério. Se as palavras são necessárias para dar nome às sensações, há lugares que não podem ter palavras porque a sua experiência não alberga possíveis ou homogéneas descrições. Assim são o sexo, a concepção, a gestação, o parto, a amamentação, a morte. Todos eles Amor e aprendizagem sobre o Amor que não é nosso, somos dele e sempre é convite dinâmico de união, liberdade, libertação e reverência .
O ventre da Senhora é profundo, fértil, fecundo.
Ela é a Mãe do próprio mundo.
Ela dá à Luz no Solstício de Inverno e recolhe no Solstício de Verão a mesma Luz que pariu e viu crescer. A mesma vegetação que brotou e decaiu, voltando à semente onde iniciou, mas já sendo outra na inextinguível continuidade. Porque sendo nascimento, ela tem que ser morte. Uma mão segurando cada ponta do fio, que atravessa o rio.
Ela é a Senhora das noites longas, porque a mais longa noite é a do parto para quem está parindo. A noite que toca o infinito. A sua arcaica celebração pré cristã não é diurna, é de 8 para 9, nocturna. Na transição de um para outro, onde a noite de Amor da concepção toca o sonho que é a gestação, a morte da identidade feminina que é o parto e a cura que é essa entrega incondicional de oferecer o corpo e alma em carne, leite e colo. A sua celebração é vigília: há que atravessar em consciência o que não se vê, o que não se sabe, o incontrolável incontornável.
Sim, sonho, morte, medicina vêm por sangue de menstruação, seiva de sexo, águas de parto, leite de amamentação. No corpo como no chão, que de verde se cobrirá. No chão como nos céus negros nocturnos e frios de onde o Sol renascerá igneo é alquimico. O manto de estrelas da Mãe Universal cobre todas as Mães, desde sempre e para sempre. Tecendo passado, unido a futuro pelo presente.
Reverência à Mãe da própria Mãe, à Mãe de todas as Mães, à Mãe de todas as Almas nascidas, por nascer, perdidas, por reconhecer. Ela é Mãe de todos sem excepção, seja qual for o caminho escolhido por cada um. Perante Ela só is filhos, iguais entre todos, nem menos nem mais, do pó, à planta, pedra, homens, animais. Dos mais imaculados e angelicais aos que têm o olhar feroz de quem traz a alma entregue aos sulcos da montanha viva.
Senhora da Conceição, Concepção, que em breve serás Guadalupe das Águas internas, Luzia parteira e depois senhora do longo Ó que traz o Bom Parto.
Aqui te sinto porque teu corpo fez o meu, desde a primeira mãe até à mãe que hoje sou. Do teu corpo vivo me nutro com gratidão a cada dia e o meu corpo caído será também alimento para outros filhos teus possa eu ser alimento. Não há mais nobre propósito nem maior alento do que servir teu coração intento, sendo chão e firmamento.
Amar, gerar, sonhar, parir, curar, cuidar, crescer, amparar, transformar, libertar sem deixar de acompanhar.
Aprendemos a ser filhas sendo mães.
Quando pari de pé estavas tu comigo e todas as mulheres que sabem sem saber que sabem que este corpo é caminho de chegada, portal de entrada para uma existência imaculada, renovada, redimida a Amor. Esta vulva tem teu manto, tecedura encanto do gerar, nutrir, parir, cuidar, doar, amparar, libertar, transformar.
Amor de Mãe. Que tudo perdoa e sempre se alarga para acolher quem e o que precisar de amparo.
O teu coração é infinito, e assim abres o nosso.
Neste braseiro de noite te vejo, na geada, chuva, vento da manhã beijando a terra. No silêncio invernal do mar e serra, tudo dentro de chão germina. Não se vê ainda, mas já começou. E como Alma é Terra, também assim eu sou.
Foto da Maravilhosa Mizé Jacinto
0 comments