10
Set

Extração dos ossos e da alma

Extracção mineira.

Extracção.

A palavra inclui necessariamente questões:
Posso extrair?
O que me dá o direito de extrair seja o que fôr, seja de onde fôr?
O que me dá o direito de extrair recursos naturais que se formaram ao longo de centenas de milhares de anos, até antes da presença humana no planeta?
O que me dá o direito de considerar algum elemento orgânico um recurso?
E se me considerarem um recurso? Um meio para um fim?
Se o meu valor fôr meramente ser usado por um tempo para deitar fora?
Se eu fôr um recurso será legítimo que alguém extraia de mim partes essenciais?

Quem tem esse direito?

Porque o tem?

Qual a pertinência de extrair?
Que uso será feito do que é extraído?
De que forma o que é extraído é necessário às necessidades básica e inalienáveis de qualquer ser humano: água, solo fértil, ar limpo?

Podemos viver sem o que é extraído?
De que forma?

Podemos viver depois da extração?

Como?
Quanto tempo demoram a esgotar as matérias naturais orgânicas?
E depois o que acontece?
Quais os danos para água potável, ar limpo e solo fértil?
São recuperáveis a 100%?
O que deixamos para que as gerações futuras possam viver?

Podemos viver com menos maquinaria e tecnologia? Sim. Milhares de anos da nossa espécie o provam.

Podemos viver sem água potável? Não.

Podemos viver sem solo saúdavel que crie alimento? Não.

Podemos viver sem ar puro para respirar? Não.

Milhares de anos da nossa espécie assim o comprovam.

Temos o direito de matar?

Como se mata directa e indirectamente?

Em que circunstâncias?

Qual é o limite ético?

 

A Natureza não é um recurso, é um eco-sistema vivo, complexo, composto por muitas interacções dinâmicas sem as quais nada nem ninguém viveria.

Teremos o direito de criar um impacto que não podemos desfazer?

Ao nascer, temos igual direito a água potável, solo fértil e ar puro. A construção sócio-política faz com que este direito básico nos seja alienado e entramos à partida numa máquina de produtividade imparável onde cada um de nós se torna um mero recurso para o enriquecimento alheio enquanto trocamos tempo de vida por entretenimento e um conforto que tantas vezes nos debilita mais do que nutre para poder ter acesso a estes três bens essenciais: água pura, ar limpo, solo fértil para alimento.

Qual é o preço do nosso conforto?
Quem o paga?
Quem o pagará?
Quanto tempo durará a riqueza gerada pelo extrativismo ?
Quanto tempo oferece alimento um solo cuidado, um rio que flui limpo?

 

Esgotamos e esgotamo-nos numa senda infindável para chegar ao essencial, quando o essencial é o primeiro passo.

Queremos tecnologia mas já não sabemos comunicar, conversar sem perder a atenção, o foco e a capacidade de ouvir e interagir com o outro.

Talvez seja a nossa ignorância que nos cega e torna tão famintos de um conforto que não só não é necessário como nunca poderá substituir a nossa necessidade de contacto, liberdade, afecto.

 

As pedras são literalmente os ossos da Terra: composições minerais complexas estruturam o chão para o manter erguido, aportam nutrientes ao solo e água para criar bio-diversidade num processo contínuo e ininterrupto que insistimos corromper de forma irreversível. Porque não podemos repor estas funções e as minas não se recuperam só na aparência, para turista ver.

 

Os meus avós trabalharam na Panasqueira.
As minhas tias também.
Carregavam pedras à cabeça em canastras. Eram menores de idade.

Sim, a miséria era muita.
As políticas agrícolas de Salazar desertificaram a Beira e o Alentejo de forma até agora irreversível. Depois, falha-nos  a memória da bio diversidade, aprende-se que a Beira é pinhal, mas o pinhal foi imposto, rasgado a uma Terra bio diversa que se foi perdendo para mono cultura, minas, barragens que retiraram a todos os rios a liberdade do seu fluxo.

 

A minha família era pastoril e agricultora. Ninguém nos diz que até 74 em múltiplas aldeias portuguesas se vivia da mesma forma cooperativa há milénios. Também ninguém nos conta que a miséria se cria e se impõe. Que o feudalismo português caiu finalmente em 74, até aí a vida de camponeses era recurso de patrões.

No entanto, há uma resiliência indomável entre as pessoas mais pobres, capazes de fazer nascer vida, alimento, cura e fé do chão.

O meu avô dizia que entrar na mina era descer ao inferno.

Quem conta os mortos das minas?
Quem conta quantas ossadas jazem por debaixo do betão das barragens?
Essas vidas também foram recursos, ceifados sem mercê nem contagem da sua passagem pela Terra.
A Panasqueira levava volfrânio e urânio, deixava cascalho e toxicidade, ainda lá estão, o meu avô já partiu. Eu partirei e o Zêzere continuará a ser envenenado pelos escombros que deslizam diariamente para a sua margem.

Da Panasqueira Salazar vendeu minério  aos soldados alemães que o usaram em armas que dizimaram milhares de vidas.
Essas vidas são danos colaterais da mineração, mas essa história, não a contamos,

A Panasqueira e o meu pobre avô, de origem judaica, afinal participaram no holocausto, porque cada gesto tem uma repercussão. Para não passar fome condenamos outros à fome, sem sequer saber, sem sequer questionar, ou questionando sem resposta.

Quantas crianças trabalham para cada um dos nossos telemóveis, computadores, tablets, automóveis? Elas também são um recurso. Quantas morrem a extrair cobalto?

Quantos holocaustos invisíveis e silenciosos, de vida humana, animal e vegetal, patrocinamos?
A nossa maior carência é então a de humanidade, consciência e compaixão.

Dessa fome, morremos todos.

 

A Panasqueira mata todos os dias o rio Zêzere. Os seus peixes desapareceram. A população que mora perto tem a maior taxa de cancro de Portugal. Há três gerações. Também eles são um recurso.

Quem fala de quem perdeu as casas e terras para ceder lugar às minas?

Quem conta a história do trauma de ouvir as explosões, de ter medo que a encosta entrasse em colapso depois de esvaziada a serra?
Quem conta a história da saúde mental, do alcoolismo, da violência, do stress pós traumático dos mineiros?
Mais recursos.

E há as tantas plantas que desapareceram, os insectos polinizadores, a fauna que não mais retorna.

Quanto custa a mineração?
Ontem, hoje e no futuro?

Quantos mortos e feridos por detrás de cada escolha, humanos e não humanos?
Quantas descidas ao Inferno precisamos de fazer ainda?

Quantos desertos precisamos de criar?
Quantos rios precisamos de matar?

 

O que fazer?

Ser responsável e responsabilizar.

Cada empresa deve ser eticamente responsável pela maior durabilidade que possa proporcionar pelos aparelhos que cria, sua reparação, sua reciclagem em novos aparelhos sem recurso a mais matéria orgânica.

Não conseguem fazê – lo? Então o aparelho não tem condições de existir. Se a inteligência não serve a continuidade da vida planetária então é inútil e deverá ser-nos inaceitável.

Afinal, se nos tornamos dependentes dos objectos que adquirimos, seremos servidos pelas empresas que os criam ou somos nós que as servimos?

Com quanto tempo de vida, saúde física e mental pagamos o nosso estilo de vida? Façamos as contas assim, para perceber se nos dá de facto mais do que nós retira. Somos nós também um mero recurso então para corporações milionárias?

Que importância tem a nossa vida e a de quem amamos e sua continuidade a não ser para alimentar o seu enriquecimento? Não será este sistema uma forma subtil mas severa de escravidão?

É o que queremos viver e oferecer como modelo de vida?

 

Opôr-nos à obsolescência programada da consciência e da matéria é fundamental. Esquecer a história ou só narrar benefícios e apagar a memória e repetir gestos graves irreversíveis. É, mais uma vez, dar voz à quem ganha e silenciar quem perde e o que é perdido.

 

Este texto soa radical?

O que é mais radical : repensar o consumo e o nosso estilo de vida ou fazer explodir e esventrar serras por dentro?

O que é mais radical : consumir com consciência ou matar um rio de forma irreversível?

O que é radical, afinal, perante os nossos olhos?

O que é fundamental, verdadeiramente, nas nossas vidas e na vida humana e planetária que são parte intrínseca, indissociável e inalienável uma da outra?

 

Tenhamos a maturidade de saber que nada do que façamos salvará o planeta. Não somos messias. Podemos no entanto optar por um impacto gradualmente cada vez mais reduzido e regenerativo nas nossas vidas, na vida planetária e social. Podemos recusar a continuidade de um modelo de destruição que põe em causa a sobrevivência directa e eminente nossa é dos nossos filhos. Em pequenas e grandes acções.

Se achamos que somos demasiado pequenos para fazer a diferença, pensemos como é estar num quarto com uma melga, a diferença que nos faz.

Ecologia caminha de mãos dadas com humanismo.
Se não caminharmos com equilíbrio e com uma perspectiva activa regenerativa de comportamentos, cultura e ecossistemas os nossos filhos não terão, literalmente, chão fértil, água limpa, ar puro e portanto, não poderão sobreviver.

Então a miséria de que se fugia ao criar as minas leva-nos de volta à casa de partida: à fome.
Serão então os nossos filhos e suas vidas o recurso derradeiro?

 

Iris Garcia

Outubro 2020

Colaboração com o livro gratuito « Portugal Livre de Minas»  download aqui