04
Jun

FECHA-SE UMA PORTA, ABRE-SE UM CAMINHO

Debaixo da Ameixoeira celebrou-se a chegada de uma criança.
O seu primeiro ano.
As bênçãos para a sua chegada vieram em sonhos, teci as visões em palavras o melhor que pude. Como de costume, foram as palavras que me teceram.
Bem sei que o baptismo é milenarmente anterior ao Cristianismo, sendo a apresentação da criança à sua comunidade tribo, recebendo a bênção das Águas da Grande Mãe, que a conduzirão, como uma gota, até ao rio e como um rio até ao Mar. Fluindo sempre no amparo da Terra que sustém as águas e as conduz no seu fluir. Porque a fluidez só existe na confiança e é a maior prática de estabilidade.
Agora esta cerimónia pertence a todas as religiões, tal como tudo pertence, na verdade, a todos. Porque o Amor é a linguagem comum que precisa de ser resgatada pela aceitação e entendimento.
Há que tecer este caminho comum, cada uma e cada um com uma linha de única e ímpar espessura e tom, sendo o bem comum o bem de todos e cada um, inclusivamente.
Somos tecelães, somos fio, somos tear.

Foram 8 dias de espaço-tempo entre a Terra devastada, vestida de cinza e despida de vida de Pedrógão.
A bênção da Criança estava agendada há muito. A morte desta área vasta de Terra não.
Mas a Vida surpreende-nos no seu saber.
Da dor se compõe Amor sem que se saiba como ou espere.
Não consegui escrever nem elaborar pensamentos coerentes durante este tempo.
Fiquei suspensa, nas horas passadas a visitar as aldeias queimadas, as pessoas doridas, as árvores negras erguendo-se na dignidade de serem vistas para que a consciência se eleve.
Eu e a Lila Nuit ficámos horas em silêncio no carro.
Ouvimos o silêncio fúnebre e as vozes das gentes.
Vimos a desorganização, as mãos incansáveis, os interesses conflituosos de chefias cuja motivação é pouco ou nada clara. Vimos os armazéns com excedentes acumulados e soubemos das pessoas que não recebiam o necessário e dos locais onde as coisas continuavam a não chegar.
As aldeias desertas, os voluntários desorientados, as prioridades confusas, a vontade de fazer melhor.
A humildade de pedir pouco de quem mais precisa e a exigência de quem muito pede e tira partido da generosidade e desventura alheia.
Como sempre, tudo em simultâneo e nada linear.

Eu sou empática. Sinto a dor dos outros de forma tão total que se torna minha. Fica-me por dentro, adensa-se em mim.
Senti a dor e o caos, humano como ecológico.
Senti a densidade da paralisia: afinal, sabemos que aqui neste recanto do mundo a Oeste somos generosos, voluntariosos, hipócritas, egoístas. Que tudo isto nos rodeia e nos pede um novo trabalho interior de honestidade, de um poder que vem do mérito e do saber fazer em conjunto, que a cada dia se aprimora no aprender com o outro, na relação.
Fomos descobrindo telefones, indo aqui e ali, enviando mensagens por todas as vias possíveis. Mas as linhas estão cortadas, muitas comunicações não chegam.

Sonhei de noite e de dia com uma dor profunda e abismal.
Senti que talvez afinal eu não pudesse ajudar como pensava. Que o muro era demasiado firme.
Como uma criança olhava este impedimento e sentia-o. E trazia este luto medicinal sob a forma de dor cortante. Chorava de repente ao olhar para o jardim, para o meu Filho, nos braços do meu Marido, ao ouvir a voz da minha Mãe, a escutar os pássaros, ouvindo o ronronar dos gatos.
Tremia de vergonha por dentro, pelo sofrimento que insistimos em tecer. E que começa nas relações diárias de cada um(a): na pessoa que se insulta no trânsito, no comentário que diminui o outro na net, no direito que nos damos de valer mais ou menos, na forma fácil como descartamos relações, afectos, pessoas, coisas.
Atravessamos uma crise de valores, cuja dimensão financeira é apenas um pequeno espelho. São valores humanos e eco sistémicos de base os que nos faltam e sem eles nada pode crescer ou manter-se em estrutura.
Há uma relação com a Terra Viva que foi perdida, em que a mesma foi e é objectivada. Re-estabelecer a consciência material e espiritual do elo de inter-dependência, perceber que tudo é necessário em proporções equilibradas, entender que não há supremacia do humano sobre o natural, porque o humano é parte do natural. Em cada célula somos Natureza e isso faz de nós iguais entre iguais neste planeta e universo.
Como cuidar de quem perdeu o essencial se a cada dia descuidamos o essencial, precisamente?
Como ia eu conseguir abençoar uma Criança e família, cuja gestação acompanhei como doula, se este espaço estava tão aberto em mim?
Mas os sonhos tremendos não desistiram. Com a mesma qualidade de vórtex do negro vinha o céu azul profundo, e vinham as bênçãos e as vozes.

Eu escolhi ser Mulher Medicina.
Já de pequenina tratava Deus por tu e lhe falava, reestruturava orações para incluírem animais, plantas, pessoas. Quis ser Bruxa desde os três anos, antes de saber sequer o que isso era. E descansei a minha Mãe, quero ser daquelas boas, que ajudam, acho que não conheces, mas eu depois mostro.
E vi-me também nesta responsabilidade que sempre soube: ser artista, terapeuta, mulher medicina é Ser para servir, para mediar, para cuidar a comunicação, mesmo a que não se faz por palavras ou por linguagens inteligíveis, mesmo que eu não saiba sequer como. Sem me deixar encantar por mim mesma, neste vazio pleno de sentir e ouvir o outro como gostaria de ser ouvida e dar na medida e o que gostaria de receber. Só sentindo posso saber, mas este sentir também pede espaço de contenção para poder existir em clareza.

Lembrei de novo a inteligência selvagem da serpente: que sabe que só tem duas opções, crescer ou morrer quando a velha pele já a estreita. Ou se deixa estrangular ou cresce, e para crescer abraça o desconhecido e a mais profunda vulnerabilidade. Quarenta dias sem pele firme e sem pele ocular, sem poder ver nem expor-se, sentindo tudo e desse sentir tão total reconstruindo a sua estrutura tão flexível como estável.

E assim, escrevi as bênçãos. Cuidei o meu Filho que nunca desiste de viver plenamente e que só me dizia nestes dias que eu estava triste sem ele saber porquê, mas que ele entendia e ouvia as plantas, animais e pessoas a chorar e estava tudo bem porque ele tinha tanta ternura para me dar.
Recebi a permissão plena que eu não dava a mim mesma, do meu Companheiro para a totalidade de um luto sem identidade pessoal definida.
Entrei em karma yoga e em reclusão dentro de mim.
Ajudei a Lila Nuit na cozinha e recebi o seu cuidar que é um abraço tão profundo como chegar a casa.

Soube que tudo faz parte, que tudo é preciso e precisoso e que a Grande Mãe Negra nos leva no seu colo, mesmo nos dias mais desafiantes. Doí o crescimento dos dentes como doí o crescimento da Alma.
No colo sagrado deste Amor, veio a redenção de abençoar a família de sobrenome Carvalho debaixo da Ameixoeira de seu jardim, honrando ancestrais, presentes e descendentes e todas as nossas relações.
Com pessoas de todos os lugares, espiritualidades e visões do mundo unidas para celebrar o momento, dando o melhor e mais puro de si.
Eu que pedi que voltassem os bosques Sagrados, a comunhão com a Terra Mãe, a igualdade total entre tudo e todos, as preces às árvores enquanto guias avós espirituais.
Aqui estava eu, uma família Maravilhosa, Madrinhas de uma doçura ímpar, crianças saltando nos ramos.
É possível. A bênção nunca nos abandona e dá-se através de cada um de nós, na relação que em verdade, respeito e gentileza se cria.
É sempre possível Ser e Sonhar além de si mesmo para se renascer mais amplo.

Voltaremos a Pedrógão na próxima semana, entregaremos refeições e bens pessoalmente aos habitantes afectados. Apoiamos já e comprometemo-nos a dar a conhecer iniciativas de reflorestação autóctone.
Em Gratidão