03
Abr

FÚRIA: FÉRTIL, FERAL, FECUNDA

Hoje,
Devagar, como quem canta,
Coloquei o colar de ossos, caveiras alvas
Com calma.
Como quem carrega em si
O coração da Tempestade em tumulto,
Filha do raio que parte,
Para quem a Vida é sempre um vulto
Do que poderia ser.

O Osso
Princípio do corpo,
Do chão coração do mundo
Pó fecundo
Sobre o qual se ergue e estrutura a Vida
Que lhe dá origem e finalidade.
O Osso só tem tempo, mas não tem idade.

Hoje,
Devagar como quem Ama
Eternamente
Cortei cabeças de dentro de mim
Umas eu, outras memória, outros pedaços paridos de estória.

Podar é preciso, enxertar também.
Olho, nos olhos dos ossos.
Em cada vazio orbital há lugar para aprofundar.
Espaço para o vôo das Borboletas.

Arrasto no chão as asas,
lamacentas de caminhar descalça.
São arados que sulcam o leito para as sementeiras.

Só trago por missão derramar-me sobre a Terra Viva
Desnuda ante o infinito céu.
Olham-nos estrelas já mortas, são todo o Céu que vemos,
brilhando na eternidade do seu Saber.
Além delas, tudo já nasce e se renova, outra vez.
Somos tão mais do que vemos.

Hoje,
Ouço as preces que o Silêncio guarda.
Navegam-me as 7 irmãs celestiais
que se tornam estrelas do mar ao tocar as águas.
Caminho no fundo do Mar.
Não respiro, mas vou caminhando.
Sei que não sou Deus, sou apenas areia fina, gota, senda,
sina sempre inacabada.
Sou osso do corpo terra do universo.
Que mais há para ser?!

Que honra portar o colar da Fúria:
Fértil, Feral, Fecunda.
Impura, celestial, infernal, profunda
Paradoxo imaculado em delicada sustentação na raíz.

Hoje só teço e oro a continuidade regenerada:
Que a Terra seja, novamente, uma só floresta
Dentro e fora da Água.
Que a Água seja um só corpo de inseparáveis rios, mares, oceanos.
Como foi, retornando a ser.

Que nos seja devolvida a pequenez de ser semente
Para sonhar a humildade urgente.
Que a Morte nos desperte o Sonho
Que é o lugar medicinal onde a cada dia a Alma aprende a viver
Em relação infinita, inacabada, sensível e essencial.

Quero ser fera outra vez,
como sempre fui,
mas mais animal ainda.
A cada dia, reaprendo esta maior sabedoria.
O Selvagem fala através da fúria
Que dissolve tudo o que ilude e vicia.
Escutar o sagrado é escutar o sangue que se agita
Vibrando pela pertença a ser restituída.

Viemos derramar-nos sobre a Terra a cada gesto de cada dia,
Em cada divergência e convergência.
Haverá maior beleza e verdadeira finalidade?!

Deixem-me nesta Paz de abraçar os ossos,
De mergulhar na lama que me limpa.
Se é da argila que se ergue a semente
Também é aqui que me torno gente.

 

Fotografia da profunda Mizé Jacinto