Inverno: Interno, Inferno ou a humildade de aprender a Alegria
Se rasgamos a carne dos ossos, que seja para aprender a cantar, orar aos ossos e soprar-lhes assim renovada Vida.
Olho a estrela do Norte e não me perco, mas preciso de erguer os olhos para que adentrem a noite e vejam além da realidade mundana.
Quando encontro a minha pequenez ante o céu universal e a Terra Viva imensa, lembro: também eu sou semente.
Mãe: seja eu tuas mãos, teus olhos, teu coração, tua voz, para cuidar, limpar, curar, Amar.
A todos os seres, sem excepção, seja qual for sua história ou caminho.
Na encruzilhada todos passamos: todos teus filhos, o santo como o criminoso, a bactéria como o humano. Possa eu, como tu, ser guardiã dos caminhos e na minha humildade, honrar o retorno ao centro, o coração: de dentro, da Terra Sagrada, da Existência.
No coração do Inverno, a Terra está em turbilhão.
Um turbilhão interno, com uma subtil expressão verdejante que já se vislumbra, mas sobretudo um fervor tremendo no subsolo.
O Inverno convida a avaliar o espaço interno, a atravessar os Infernos como fez Perséphone, Proserpina, a tão nossa Senhora d’Azenha* na mó de baixo e de dentro da ciclicidade da Vida.
Neste Inverno, esse mesmo turbilhão interior suga-me qual remoinho d’àgua, para o seu núcleo. Convidando a adentrar tudo o que se transforma.
Muito oiço dizer que o Inverno é um tempo de Morte. Não é. É o tempo do início da Vida, o verdadeiro parir e pós parto de uma nova Natureza e realidade. Iniciar pode ser tão mais exigente do que morrer. Ficar é por vezes tão mais desafiante do que partir.
Ao olhar a suave vegetação verde que começa a cobrir a Terra podemos apenas imaginar a quanta resiliência, entrega e compromisso terá exigido a cada semente germinar, bem dentro do chão, e abrir espaço até à superfície: ante o frio, a dureza, a ameaça de predadores. Delicada mas persistente, avançou, brotando, crescendo. E está agora mesmo nessa mesma senda ininterrupta.
A bolota jamais sonha que será carvalho, mas passo a passo, momento a momento, segue a Natureza de Vida que em si pulsa e por décadas se vai construindo até chegar à soberania. Só no ponto mais frio do ano a bolota germina. O que nos diz isto sobre a alma e o cerne das nossas relações?
O que me leva a reflectir: como perdemos quer a resiliência da erva daninha, que frágil abre caminho e em serviço dedica a sua vida a trabalhar o chão para as plantas que depois de si vingarão; quer a acção lenta, profunda e dedicada das grandes árvores como o carvalho, o castanheiro, a oliveira, que eram plantadas para que a geração seguinte comesse os frutos.
Perdemos noção do tempo e talvez seja isso que nos leva a ver a paragem invernosa como morte: parar é morre, já diz o ditado não é? Mas, e se não for?
Se parar for o tempo da regeneração, da renovação, do quebrar a casca para poder germinar?
Se parar nem sequer for parar, mas apenas parar aparentemente, para que internamente se encontre um novo sentido, um propósito renovado que só pode existir quando os velhos traços de identidade e vivência deixam de atrapalhar o caminho?
Corremos tanto tanto, todos nós, todos os dias. Para chegar onde?
Fazemos tanto tanto, todos nós, todos os dias. Mas quem somos e porque estamos vivos agora, neste preciso momento?
Na Beira, tal como no Alentejo, as pessoas mais velhas passam sempre uma parte do dia sentadas ou à porta de casa apanhando Sol ou ao borralho da lareira. Esse tempo às vezes tem conversa, outras silêncio contemplativo, apenas. O tempo de não fazer nada é o tempo onde finalmente podemos ser feitos, pelas forças anímicas sagradas da Vida e da Alma, não só da Alma individual mas da Alma Mater, a Alma Mãe, Universal, da qual somos uma gota.
Passamos muito tempo entretidos, num lazer que esgota em vez de nutrir, porque não sabemos parar. Educamos gerações inteiras a não saber olhar o dentro, a pausa, a sentar-se sustentando estados emocionais diversos, do desconforto ao alento, da dor à regeneração vagarosa e por isso minuciosa do coração partido. E as mudanças são todas para já, só que a mudança nunca é já, o Agora é somente o início. Depois, há que sustentar cada fase do processo, dure o tempo que durar.
Querendo ou não, estamos na eminência de uma mudança, já começou. Agora, é bom aprender a sustentar, e saber que a transformação é sempre de dentro para fora, e é exactamente aqui que todos estamos e o que todos precisamos de aprender.
Estes dias, enquanto a Austrália ardia, como ardeu a Europa, Portugal, Grécia, Sibéria, África, Amazónia do Brazil à Bolívia, Califórnia e tantos outros, senti-me gelar. Às vezes a dor é tanta, a empatia tão total que o véu do entorpecimento nos cobre. Foi uma enorme lição de humildade:
perceber que quem anda entorpecido merece muita compaixão, porque só fica dormente quem sente e não sabe como gerir, partilhar e ser acolhido nesse sentir tão fundo.
Sentir é um acto de rebeldia, é secularmente assim: só quando o sentir é validado tem lugar, e em pequenas proporções. Sentires intensos são indesejáveis, ninguém sabe o que fazer com eles.
Mas depois as florestas do mundo ardem inteiras, os sistemas felizmente colapsam, caminhamos cada vez mais de pés descalços e o futuro pode fugir-nos das mãos, ou… Podemos sujar as mãos a plantar novos bosques, habitats e finalmente um sentido inato que pertence ao sermos filhos da Terra e não da ordem social. Filhos de comunidade locais, de lugares com Vida, com geografia que esculpe a fisiologia e a psicologia e não apenas uma abstracção homogeneizada de pessoas com casas para o corpo e sem- abrigos do coração.
A Mãe Terra, no seu turbilhão infernal que é o nosso, ensina-nos magnânimes lições agora mesmo.
Os animais e plantas que partem, partem-nos por dentro, chamam-nos nos sonhos e visitam cada uma das nossas células. Não há como fugir, de quem em África trabalha para manter privilégios que são facilmente suprimíveis. A vida moderna tem cárceres e temos que aprender a ser nómadas como as quebradas e mescladas tribos iniciais de quem somos ainda os actuais descendentes.
E nisto tudo, há que assumir a dor mas também:
Ter a Humildade de aprender a alegria.
Porque estamos famintos dela, Famintos desses risos de gente velha e sem dentes, abrindo os olhos brilhantes para rir de uma qualquer tolice que a Vida traz e que convidada a saber aligeirar. Rirmos de nós e uns com os outros.
Matar através da Alegria o veneno do entretenimento, porque não precisamos de estar nem entretidos nem preocupados, mas antes dedicados ao tempo de Ser.
Afinal, que semente vinga sem alegria?
Que criança se desenvolve saudável sem ela?
E não é também a alegria que nos ensina a chorar e a saber que é seguro sentir a dor total, porque irá passar. E mais uma vez, isso é saber o tempo, saber o valor do Inverno e do Verão, abraçar ambos e ainda as transições do Outono e Primavera.
O Sol repousa na Noite e dela se ergue a cada dia.
Perséphone escolheu: comer os bagos de romã que a trariam ciclicamente de volta ao Inferno, embora metade do seu tempo fosse passado à superfície.
Assim escolho eu, não me esconder de nada e comer os bagos de sangue que me trazem possibilidade de movimentar-me entre distintos espaços e sentires, dentro como fora.
O Inverno convida: observa a Estrela e a Semente, e conhece o que as liga.
A Esperança semeia-se, a cada hora.
É Agora, nas tuas vivas calejadas mãos, que reside a possibilidade de cultivar o Milagre.
*Azenha significa roda do moinho de Água
A Senhora d’Azenha é da tradição raiana, Idanha-a-velha e Monsanto, Beira Baixa
Fotografia: Mizé Jacinto, a Mulher Maga que coloca a Alma em imagem
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