18
Mai

O avental de Fogo

Quantos convites recebemos de um mundo que não tem lugar para nós?

O culto das Senhoras é um acto de resistência.

Somos sempre e desde há tanto tempo convidadas à norma.

Primeiro perseguidas e punidas. Depois modernizadas, depois ridicularizadas, criticadas, insultadas, tidas como ignorantes, romantizadas, idealizadas, infantilizadas mas sempre inaceitáveis.

Refletia sobre esta relação da mulher e da casa como bandeira do conservadorismo e parece que Trebaruna me desassossega enquanto escrevo estas palavras.

Ela, Lusitana Senhora do Fogo e do Lar. Guardiã dos mistérios da casa como da morte, da batalha,  da transformação.

Loba e Ovelha, Mãe sustentadora dos paradoxos, todos eles.

Afinal, de tudo isto nos fala a fermentação do vinho, do mel e do pão.

Levaram-nos a hóstia e o sangue, ofereceram os mistérios da nossa carne e do nosso corpo a quem nos violentou. Sempre essa ideia de que devemos ser outra coisa noutro lugar quando cada pessoa só nasce para se ser a si mesma, numa obra que é solo vivo em constante criação e relação.

Não mais!

O Pão é o Corpo da Senhora Mãe, Velha como a Massa Leveda que nos nutre, seu sangue fermenta como o nosso e renova a vida enquanto Ela nos dá mãos para transformar o alimento em nutrição.

Ardemos.

Os caldos e os caldeiros, as colheres e os braseiros pertencem-nos.

São nossas todas as vassouras e candeias.

Não por sermos recatadas e submissas, mas por sermos selvagens, inteiramente.

Por sermos Senhoras do nosso corpo, da nossa casa e da teia de relações que tecemos no nosso caminho de vida.

Voltar à cozinha com a mão das antigas curandeiras segurando a nossa mão na invisibilidade é um acto de sacro ofício: afinal, somos nós que nos transformamos na relação com o cuidado do alimento e de quem dele se nutre.

Fermentamos, ardemos, cozinhamos o pão que é entranha e coração.

Reclamar a preparação de alimentos e fórmulas medicinais herbais é erguer a mão contra a máquina,  voltar ao tempo do corpo, da Terra, da anima e sair do vórtice que desumaniza e se paga com tempo de vida e atenção.

Reclamar este espaço não como o único que podemos ocupar mas como o laboratorium primordial da curandeira, de onde parte e a que retorna para elaborar a relação do eu com o mundo natural e social, é um acto de resistência.

Como tem sido o culto das Senhoras milenarmente, onde a ancestralidade animista perdura para quem tem olhos para ver.

Seguimos.

Somos o caldo no caldeiro da Senhora.

As guardiãs do Sagrado: que é a relação reverente com plantas, animais,  elementos e toda a natureza como base essencial da vida humana.

Somos húmus que se torna humano e somos humanas para nos tornar húmus. Húmidas e quentes como tudo o que vive, fermenta, transforma e alimenta.

Queremo-nos chão, bosque, floresta, flor.

E diante da devastação insistimos teimosamente em regenerar, no tamanho do empenho das nossas mãos, cada lugar.

Treba, trevo, trivia, casa, caminho, treva.

Como o lugar nocturno e negro das cozinhas arcaicas, como a da minha Bisavó Maria no coração da Beira. Fogo no centro, paredes de pedra tingidas a foligem. Louças de barro, madeira e ferro.

Uma só porta sem janela.

E a melhor broa de milho que já provei. Plantas no sequeiro, feijão, couve, batata.

Orações mexidas no ritmo da sopa.

Partilhas de segredos que só aqui podiam ser.

Sim, saber letras não é necessariamente saber viver.

Unimos neste tempo as linhas do antes e do agora para deixar depois na tecelagem a quem virá.

Atrevemos o mistério sempre incerto e por isso fértil.

Somos a massa do pão nas mãos da Senhora e somos a massa do pão que fazemos. A massa velha que leveda e a que se dá ao cozer.

Somos a vida que nunca se repete e atravessa.

Quem usa o avental tem que saber que a algibeira guarda os mistérios iniciáticos do ventre. Potente e negro e quente.

Quem quer a casa tem que lhe saber a ferocidade. Tem que afiar a garra que protege o Sagrado e a Vulnerabilidade.

Sento-me com isto, hoje, na cozinha.

Que é o centro da encruzilhada,  a cama dos Deuses, a mortalha fecunda que dá vida.

E algo em mim sorri: feroz, do bosque e do lar.

A doçura da ovelha é para quem a merece, reverencia, agradece e cuida. Muito e sempre.

Estamos ao serviço de quem nos nutre.

A Loba é a guardiã deste lugar, a que se une por vínculo, escolha e senda sem nenhuma prisão ou obrigatoriedade.

A nossa soberania não é negociável e a nossa generosidade e doação são na medida da nossa infinita liberdade que é o sopro de Trebaruna ao fogo do braseiro, para o tornar possível e inteiro.

Parece que sinto a chama da revolução chamando. Afinal a cozinha é para as curandeiras o elo entre o Bosque e a verdade. Lugar de visão, labor, tesão, ardor, atravessamento, transbordamento da vontade: d’Ela e nossa e das que cantam às pedras, plantas e ossos com o ardor da sua alma, desde a noite dos tempos.

Seguimos.

Somos primeiramente Espinhos para podermos ser Rosas.

Parimos, nutrimos, amamos, honramos, morremos, dançamos e, ervas daninhas, voltamos. Sempre.

E sempre de outra maneira.

Estamos como a Urtiga, vicejando à Beira de todas as coisas.

Não há normalidade que nos melhore.

Viemos para retornar sentido ao viver.

Saiam da frente das que mexem o caldeiro ardente e vestem o avental de fogo.