
O CHÃO COMO CORAÇÃO
Ou o fim é o início
Para os antigos celtas o dia começa no crepúsculo.
O ano começa no ponto de maior escuridão.
Verdadeiramente, para os povos primevos na observação da Natureza , a vida humana e animal inicia na escuridão do ventre materno, a vida vegetal inicia na escuridão da Terra, ventre da semente.
Se perspectivassemos a escuridão como início da Vida, como a olharíamos culturalmente? Como seria a nossa noção de espiritualidade reverênciando a integração orgânica de forças aparentemente opostas mas que se transformam em distintas facetas através de uma só continuidade?
Falamos assim de Chão Coração, de noite amparo.
Falamos de perceber toda a filosofia, poesia e espiritualidade em relação à vida terrena e sua continuidade.
Falamos de uma apreciação e constante interacção concreta com o que vive: minerais, fungos, bactérias, plantas, animais, estrelas, águas, sol, sazonalidade.
Essa apreciação cria uma pertença a um todo tão maior mas cujas manifestações são permanentemente expostas diante dos nossos olhos. Porque o milagre da Vida é o mistério da concepção, gestação, parto, germinar, florir, frutificar, decair, envelhecer, Amadurecer, partir para se tornar a alma do lugar Terra.
Se aqui não há a maior sacralidade então não sei onde possa estar.
Se fizemos um dia jornadas mitológicas está talvez na hora de quebrar os estreitos arquétipos que nos permearam ao ponto do estereótipo e ir, além do símbolo, à realidade primeira que o fez nascer.
Chão como coração é um compromisso devocional: de entender a Terra como viva, consciente. De saber que somos parte da Terra e ela nos sustenta mas não está aqui para nos servir antes somos nós que servimos a vida na Terra e sua continuidade, quer através da nossa vida quer através da nossa morte. Para o chão coração tudo é nutrição e transformação.
Como seria, após milénios de devastação cultural, aproximar-nos da Terra e da pureza ocre e castanha chão em vez de nos afastarmos?
Como seria se a imaginação falasse da Terra e do corpo animal em vez de convidar ao afastamento?
Anima: alma, animal têm a mesma raíz etimológica. Se não percebemos que falamos de um mesmo lugar continuaremos a predar, consumir e extrair vida da Terra e seus seres em vez de experiência a inter-conexão que nascemos preparados viver.
Começamos hoje , no chão coração que nos dá caminho, casa, alimento. Começamos hoje por agradecer as tantas bênçãos que tomamos por rotinas garantidas e que são a sustentação de toda a nossa vida.
A água, o alimento, o ar, o abrigo, o amor.
Fotografia de Mizé Jacinto
Tudo o mais, é excesso e distração.Artigo para a revista Vento e Água
0 comments