16
Out

O Foco e o Fluxo

Suspiros de Deus no Caminho do Corvo

Esta é a Lua do Corvo: travessia essencial na descida ao lugar mais interior e inferior do ano.

Após o Solstício do ano, que é o pico da ascensão do Sol como da Vida Vegetal que nos sustém e mantém vivos, inicia, suave e gradualmente, a descida. Esta descida é assinalada nos mistérios de todas as tradições pagãs, porque é um portal importante de retorno às raízes, depois de toda a expansão que  a Terra vive, e por conseguinte nós, entre o Solstício de Inverno e o Solstício de Verão.

No equinócio de Outono, a queda torna-se evidente: entre as últimas colheitas ( em que o fruto maduro desce às nossas mãos para ser apanhado) e a queda das folhas que despem as árvores, vamos vendo o envelhecimento, que tem dentro de si o retorno ao ponto de origem. Tal como o fruto se descarna da polpa e volta a ser a semente do potencial infinito.
Depois da queda, há o desmembramento: no chão, as folhas quebram, os frutos caídos decompõem-se, e a tempestade traz a fermentação necessária à compostagem. As cores outrora verdes, depois vermelhas da maturação, são agora amarelas, castanhas, numa morte dourada que se tornará negra, Terra Pura.
Negra é a Terra fértil, Pura, depois de toda a matéria nela decomposta.
Negra é a Terra fértil que em si traz todos os corpos alquimizados em nova vida de todas as criaturas, desde sempre.
Negra é a Terra fértil que nos convida à comunhão com o chão, que é o coração pulsante da Vida enquanto existência, da qual a nossa pequena vida individual é um pequenino elo na cadeia da continuidade.

Atravessamos o fluxo, que não é um ponto fixo de calendário, mas uma peregrinação entre o equinócio de Outono e a Boa Morte de Samhain. Entre o decair: amadurecer, envelhecer, desfazer, decompor e morrer ou deixar morrer que também é doar-se ao serviço da Vida.

Numa cultura em que focamos muito a ascender e a exteriorização, e em que tanto usamos a expressão estar ao serviço, pode ser difícil abraçar esta fase desconhecida do ano, que também nos convida a morrer por dentro, na identidade, para nos ir, gradualmente, iniciando na jornada da morte de quem e do que nos é valioso e até de nós mesmos.
Para mim estar ao serviço é ser Mãe: sem hora marcada para atender o necessário, o que nos é solicitado: colo, mama, cuidado, atenção, afecto, limites, cura, presença e sobretudo verdade. Essa verdade que vem aos pedaços do tanto que construímos e desconstruímos para podermos evoluir devagarinho, no coração.
Estar ao serviço como Mãe, também é mais do que apenas cuidar os nossos próprios filhos, mas antes maternar todas as nossas relações, sejam elas quais forem, dos nossos amantes ao esterco do composto; da melhor amiga à Águas do Rio sem as quais não há sangue fluindo; da palavra como do ar que respiramos; do nosso corpo como da Terra Viva e de todos os seres que dela fazem parte.
Somos cuidadores e dadores, a Vida cria-nos para, de forma fértil, se expressar através de nós: concedendo-nos livre arbítrio que é a forma que o Universo tem de se surpreender a si mesmo e continuar brincando, usando-nos como fio imprescindível da teia da existência que abraça a vida e a morte e une os espaços entre ambas, mesmo onde não podemos entender.

Neste caminho do Corvo, vejo as suas asas negras e iridescentes levarem de mim tantas qualidades que prezo. Tantas relações que de forma medicinal me dão o remédio que precisava mas que jamais escolheria, por, sem querer, evitar o amargo essencial à cura. Vejo-me no mais sombrio, na confusão, no cansaço, no desfazer, no que não brilha nem reluz, na imprevisibilidade que me destabiliza mas me ensina que a dança da Vida, da Alma, do corpo são um equilíbrio sempre dinâmico e sem ponto fixo.

Sento-me na encruzilhada que é uma trança de todos os caminhos que até agora percorri e me percorreram, perante tudo o que cai e me despe: há a força da raíz e a integridade do tronco.
Aqui, no que morre e decai, há a promessa de um novo solo, mas há que esperar o tempo orgânico em que a prontidão naturalmente se expressa. Não posso controlar este ritmo, apenas acolhe-lo.
Às vezes, tantas, o meu ritmo interno está em conflito com o ritmo do mundo e sinto-me a segurar um elástico que partirá e me irá ferir. Aqui, aprendo a aguardar sem me distrair mesmo perante o que desafia as noções fixas de bom e de mau, porque tudo é continuidade evolutiva.

Agradeço ao Corvo os ensinamentos: a Luz cega e oculta tanto quanto a escuridão.
A sombra revela tanto quanto a Luz e quebra a superficialidade do ver, para apoiar a profundidade do sentir.
Tudo o que o Corvo leva de brilho e luz, é aquilo que nos hipnotiza e ilude, será isso que ele enterra bem fundo, até sentirmos o chão de quem somos que nunca poderá estar separado do chão-coração da Terra Viva e de todos os caminhos nela existentes e quem os percorre.
Agradeço também aquilo que estou a aprender sem me dar conta, que é certamente tanto ou mais do que reconheço.

Sento-me na encruzilhada: não tenho direcção nem orientação. Apenas aguardo o passar do tempo e daí advém a transformação profunda. Movo-me nas tarefas do dia-a-dia com outro olhar e outra atitude interior.
A atitude de não saber como vai ser mas atrever-me a sonhar, outra vez, devagarinho. Deixando que o sonho me sonhe também e transforme, cuidar esse espaço nas minhas relações e em todo o movimento da Vida.
E a atitude de rever o que foi. Reflectir: que é pensar profundamente e discernir o quanto projectamos e precisa de ser revisto, porque afinal ainda havia sementes não vistas no que parecia apenas um monte de folhagem seca e velha.
Aqui, tudo me assusta, afecta e move, mas também me fascina e ancora a minha devoção perante o Grande Mistério.
Fui concebida nesta fase do ano e também nesta fase do ano nasceram o meu Avô, o meu Pai e o meu Filho.

A lareira traz de volta o fogo ao lar, porque o tempo já arrefece.
O fogão cozinha para preservar as bençãos em conserva para nutrir no Inverno, no Interno.
As sementes dormem dentro do chão que composta.
Os corvos riem, a chuva retorna descendente sobre a Terra, a coruja observa, o sapo põe os ovos e hiberna, a salamandra celebra.
As minhocas dançam e os cogumelos florescem da matéria morta, criando novo chão.

Eu pergunto o que é foco?
Foco é fogo. Mas o fogo não é fixo. A chama ondula, se descuidada ou destrói e incendeia ou se apaga. A chama varia de intensidade, quer no brilho quer na temperatura.
Eu exijo de mim pontos fixos, comportamentos fixos de atenção, de produtividade, de qualidade.
Eu exijo o que é impossível na Natureza porque: tudo é fluxo.
Foco é fluxo, nada aqui é fixo. Não o é na Natureza Viva, não o pode ser em mim.
Acolho o fluxo e o foco, no seu movimento descendente, que desnuda, que revela, que desconstrói, que ensina a partir e deixar partir, mas também a cuidar e a nutrir e sobretudo a honrar o tempo de não fazer e de mergulhar no interior, inferior.
Eu escolho e assim acolho a variabilidade do que me atravessa, de quem sou e da Terra Viva.
O que fica não sei, porque é uma jornada e não um fim.
Mas seja o que for, seja eu quem for, que sempre seja fluindo, no propósito de expressar e servir a Vida.

E só mesmo para este post não ser demasiado sério, segue, ao som da chuva que cai,
A Receita do Bolo de Dióspiro (Suspiro de Deus):
Esta receita precisa de olhos atentos e mãos sensíveis porque não tem medidas fixas, até parece a Vida 😉
– dióspiros (eu tinha oito de tamanho pequeno e médio para aproveitar, daí ter criado o bolo)
– amêndoa (moer em farinha na hora)
– óleo de côco
– curcuma, pimenta preta, canela, noz moscada, gengibre
– sementes de psylium-husk
– coco ralado

Desfazemos os dióspiros na liquidificadora, colocamos numa taça ampla, misturando a farinha de amêndoa,
as especiarias (uso sempre uma colher de chá da mistura de curcuma com pimenta preta em pó, outra de noz moscada e mais duas ou três de canela), uma pitada de sal, algumas colheres de sopa óleo de côco e duas ou três de psylium, uma pitada de sal para fazer sobressair o doce da fruta.
A consistência do bolo deve ficar uma massa uniforme e com densidade, não pode ser demasiado seca nem demasiado líquida. Assim, vamos usar a quantidade de farinha de amêndoa necessária a este ponto.
Depois de tudo bem misturado, adicionamos côco ralado e voltamos a misturar.
Recomendo provar para ver se precisa de ser mais doce e adoçar, caso necessário, com rapadura ou xarope de tâmara.
Vai ao forno até dourar e ficar sólido.

Este é um bolo rico em proteína, minerais e anti-oxidantes. É totalmente anti-inflamatório, o que nos ajuda a serenar o sistema digestivo e por isso a agitação mental.

Procuro sempre bolos que alimentem, que não entretenham a barriga ou até façam mal, mas que nutram e nos alinhem com as estações, os ciclos de Vida da Terra expressos na vivência da nossa Alma e do nosso corpo.
O prazer e o bem-estar não devem separar-se, e começa na nutrição, no cuidado com o que ingerimos: física e emocionalmente.

Agradeço a chuva que cai, possam as raízes reter esta preciosa Água e leva-la bem para dentro do chão, lençol freático, para assim crescer o caudal nas nascentes e  se tornar rio à superfície.
Assim as nossas lágrimas desçam e adentrem as nossas raízes, para que a abundância interior cresça e assim possamos regar as sementes dos sonhos que virão, ou de dentro de nós ou até às nossas mãos para serem nutridos.

Agradeço a vossa leitura e o tempo sentido, que nos orienta com simplicidade.

Na lua descendente do Corvo, na cozinha que é escritório e biblioteca, entre o bosque da Lua e o Mar da Adraga.