
O HÁBITO FAZ O MONGE
Toda a nossa Terra arde.
Da casa dos meus pais já se vê o fogo. Da casa dos pais, amigos, familiares de quase todos nós já se sentiram as chamas. Se não desta vez, de alguma outra.
Não é normal, muito menos natural.
O meu Pai, natural de Oleiros, engenheiro agrónomo, explica claramente: sempre aqui houve fogo, desde que eu era miúdo. Combatemos muitos sem que cá viesse ninguém e nunca tomavam estas proporções. Eram outras árvores e outra força do povo.
Temos a banalização do fogo a cada Verão, como se fosse inevitável.
Temos quem continue a sua vida, achando mal sem dar mais do que a sua opinião.
Porque é que os incêndios são um assunto que pertence a tod@s nós?
Porque sem Terra saudável a nossa qualidade de vida enfraquece gravemente e a nossa sobrevivência como espécie fica ameaçada. Somos parte desta Terra viva que arde e ela fala-nos de um desequilíbrio para o qual todos contribuímos activamente, todos os dias: o consumo. Neste caso específico, de papel.
Poderia tratar-se de outro, são muitos os hábitos viciosos que desenvolvemos e que nos escravizam e retiram muito mais do que nos dão ou nutrem.
Tenho reflectido muito sobre o adágio o Hábito faz o Monge, nas suas múltiplas dimensões:
Se o hábito faz o monge, os gestos adquiridos por habituação tornam-se uma roupa segunda-pele que também nos define e apresenta aos demais.
Assim, precisamos de trocar esta roupagem , redefinir os nossos hábitos e repôr neste adágio a sua verdade essencial: a prática (disciplina) faz o praticante e assim do banal se faz Sagrado.
A prática do equilíbrio e sustentabilidade é a única sustentação possível de qualquer relação que possamos ter, desenvolver e manter.
É um hábito duro enquanto disciplina, estamos longe de ser monges. Mas chegará o dia, porque a perseverança nutre todos os que ardem no fogo imperecível da compaixão e do equilíbrio.E na verdade, todos sabemos que não há outro caminho.
Há na nossa cultura portuguesa colectiva o «Eles», aqueles que se espera que saibam, façam por nós, resolvam ou sejam castigados; ou até tudo junto. Essa mítica entidade sem rosto retira a nossa soberania individual e comunitária, isola-nos no medo, indiferença e culpabilização do outro.
Em vez de Eles, somos NÓS. Cada um de nós, sem excepção.
É a hora da sustentabilidade interior, comunitária (social), ecológica, se materializar em escolhas pro-activas que fazemos todos os dias através das mais pequenas acções.
Hoje sinto também a urgência de um apelo que não diz respeito somente a Pedrógão, mas a todo o país.
Sinto a urgência de falar do que acontece, quando nos montes ardidos, deixam de haver árvores que nas suas raízes conservem a água da chuva: a cinza este Inverno deslizará com a acção das chuvas para os vales. Toneladas de cinzas. As aldeias poderão sofrer cheias tão devastadoras como foram os incêndios, carregadas de cinza molhada e lamacenta. A Terra ardida não tem, sem vida vegetal variada, capacidade de absorver e reter a água. Esta cinza corre o grave e sério risco de se deslocar em rios densos e negros.
Os cursos de água levarão também as cinzas até ao mar, onde a sua acção corrosiva se adensará sobre a vida marinha.
Os lençóis freáticos em Pedrógão, por exemplo, já falam do desastre tremendo que acontece no subsolo: já não há água potável em muitos locais, é negra ao abrir a torneira.
Se os lençóis freáticos ficam ameaçados é a água potável de todos nós que está em risco, mesmo que não na totalidade (por enquanto).
Tudo na Natureza funciona em rede, os lençóis comunicam e interligam-se entre si, não são estanques.
Esta é uma responsabilidade humana e ecológica de todos nós. A reflorestação autóctone não é uma das alternativas: é a única possibilidade de sobrevivência.
A rede da vida, no bosque como nas pequenas comunidades, precisa de ser refeita.
O melhor de um tem que ser o melhor de todos e de cada um. E isso é outra vez, uma escolha e reflexão diária: hábito vicioso ou prática construtiva? Onde colocamos a nossa energia, vontade, acção?
E como podemos construir a cada dia uma melhor relação connosco mesmos, uma auto-estima mais plena, se soubermos que as nossas opções podem não ser as mais rápidas e fáceis no imediato, mas são sem dúvida as melhores para nós e para os outros?
Sejamos como o Salmão: peixe Sagrado na cultura celta e nas culturas indígenas norte americanas. O mesmo salmão faz toda a corrente atlântica, atravessando Portugal, Irlanda, Escócia, Estados Unidos.
Na coragem tremenda de remar contra a maré pela preservação da continuidade da vida. É o único peixe que o faz, e faz em tribo.
Sejamos como o carvalho, que se ergue da bolota com tempo, perseverança, soberania.
Tenhamos a sua resiliência e capacidade de junt@s remar em direcções desafiantes, mas tão melhores.
Não há momento como o Agora e urge começar.
Algumas ideias de acção:
– cada vez que quer fazer uma crítica pense de que forma pode envolver-se e usar essa energia para fazer melhor, apropriando-se da sua autonomia de acção.
– Não anestesie o seu sentir, só sentindo poderá parir a realidade em que quer viver, conscientemente. Pergunte-se como usar a força das suas emoções para fazer mais e melhor, por si e pelos outros e faça. Não tema errar, só se aprende fazendo e só se faz tentando.
– Envolva-se em apoio humanitário e ecológico, na escala do que for possível para o seu tempo e capacidades. Evite dar dinheiro, dê trabalho, dê tempo, assim saberá mais o que é preciso e delegará menos a sua responsabilidade tendo a certeza de que o seu apoio chega onde é necessário, da melhor maneira. Se o seu apoio estiver a ser dado a instituições com gestão ineficiente expresse educadamente o seu parecer e dê alternativas construtivas, a partir de valorizar os pontos fortes existentes tanto quanto o que pode ser melhorado.
– Faça destas actividades parte da sua vida familiar: piqueniques na Natureza para reflorestar, colecta de roupas, livros, brinquedos e alimentos em alguns momentos do ano para distribuir a quem precisa. Eduque ao não consumismo: comprar não é necessário para ser feliz: que outras alternativas de contacto e conexão podemos ter, proporcionar e cultivar? Assim, rompemos a escala do consumismo, da dependência e da exploração. Inspirando crianças a trabalhar por gosto e não pela obrigação de suprir uma cadeia de falsas necessidades à vida na sua base essencial.
– Não sabe como? Peça apoio a pessoas e instituições em quem confie. Aprenda e espalhe a palavra acção. Há dezenas de bons projectos, não será difícil encontrar um que lhe faça sentido. Se fôr, procure mais ou crie o seu com um grupo de pessoas com visões afins.
– Não acredita? Renove a fé e faça, afinal de contas, não tem nada a perder 😉
– reduzir ao máximo o consumo de papel : papel higiénico, escolher guardanapos de pano em vez de papel, transformar a roupa velha em panos de limpeza e reduzir o uso de papel de cozinha, reutilizar ao máximo sacos de papel (sobretudo nas compras de roupa, que são aquelas que quase ninguém faz com o seu próprio saco), usar malas grandes que permitam levar coisas dentro sem precisar de sacos
– reduzir o consumo de plástico
– reciclar embalagens
– consumir o mínimo possível de alimentos embalados
– outras ideias boas que tenha: pratique e partilhe (inclusive comigo, que eu também quero saber mais para fazer melhor)
– Sabe aqueles canteiros abandonados na sua rua, no seu trabalho, na escola dos seus filhos? Cuide-os com um grupo de vizinhos. Plante espécies autóctones, comestíveis e medicinais, quer de plantas herbáceas, quer de árvores. Sabia que em Paris há um projecto de pomares na rua, para que ninguém passe fome? Plantado por cidadãos.
– Seja a mudança que quer ver no mundo. Lembrando sempre que cada caminho se faz passo a passo.
Anita Roddick
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