SANTUÁRIO: ou a prática do silêncio perante o caos
Santuário é um local de protecção, onde todos os conflitos cessam e há protecção dos mesmos. Um local onde prevalece aquilo que nos é comum: as mesmas dores, desafios, temores e sentimentos de afecto enquanto afectividade e afectação recíproca. É um local de reflexão para adentrar o mundano na sua camada aparente e observar a teia complexa e multifacetada da realidade, tecida a experiências sensíveis.
Nas culturas ancestrais bem como nas culturas cristãs, sobretudo as mais místicas o tempo de retiro para contemplação, em silêncio, jejum e sem qualquer estímulo visual, auditivo e intelectual era prática comum e fundamental. Não é o mesmo do que fazer um retiro para aprofundar esta ou aquela prática, ler ou estudar. Não, a proposta é ficar em silêncio verbal e mental, nesse tempo natural e orgânico que também nos remete a um tempo antes da socialização: um tempo uterino, de regeneração, deseducação cultural e portanto, necessariamente, de poder ver a espiritualidade intrínseca à natureza enquanto Alma Mater, Mãe da Alma.
Este retiro não é uma evasão alienante, antes uma proposta de presença elucidativa das várias camadas das formas como vivemos e como se tecem as relações.
Para os povos budistas, este conceito denomina-se refúgio.
Para os povos xamânicos e pagãos, a Floresta é o Santuário, o Coração e a fonte de sabedoria e inteligência simultâneamente divina e orgânica, sendo a camada orgânica que forma o organismo vivo de que fazemos parte a forma aparente para acesso à essência da consciência espiritual, passo a passo. Se buscamos evolução consciente através de perguntas e respostas que geram novos questionamentos, cura gradual sistémica e sair do estreitamento do pensamento diário, este é o local para onde seguimos em peregrinação, cultivando silêncio, abstinência e humildade.
Ser habitado pelo Bosque Vivo foi, e ainda é, para os povos tribais ancestrais, o propósito da Vida.
Paradoxalmente o Santuário ensina a Morte, a social, a da aparência. É um lugar de desnudar e reverenciar os ossos debaixo da roupagem da pele e do tempo. Deixamos, temporariamente, quem amamos e a vida como a conhecemos para abraçar a simplicidade voluntária, nesse silêncio que é a forma de comunicação não-humana mais primordial, ao mesmo tempo que praticamos a despedida, o afastamento, o encontro com o desconhecido, uma pequena prática na entrada da morte.
Todo o Bosque emerge constantemente da fecundidade da Morte e ensina assim a entrega:
– a primeira entrega: é saber que é o chão que nos alimenta , dá casa, caminho, cura e relações.
– a segunda, é saber que seremos chão e aprender a ver neste facto uma dádiva e uma generosa doação
– a terceira, é aprender a despedir-nos e a cultivar a presença como se fosse a cada vez, a última vez que estamos juntos
– a quarta, é aprender a valorizar os espaços que se abrem aquando da despedida sem ignorar a tristeza tão pouco sendo indulgente nela
O tempo de retiro na Floresta dá-nos a possibilidade de ver de longe a teia social das nossas relações íntimas às colectivas e assim poder perceber com mais clareza o que está sendo tecido e o que as nossas mãos estão tecendo e como.
Faz cair em purga a dependência, ilusões, compulsividades. Confronta-nos honestamente com o que fazemos daquilo que fizeram de nós.
Os antigos heremitérios recebiam visitantes para retiros, prática corrente para pessoas de todos os meios sociais até inícios do século XX. Para curar corpo e alma através da contemplação, oração, silêncio. Houve sempre aqueles que foram solitários e solitárias heremitas e adentraram o bosque selvagem para mergulhar no Santuário.
Contemplação, Simplicidade, Silêncio, Oração são ainda hoje, independentemente da condição religiosa ou sua ausência, qualidades fundamentais e urgentes. Vivemos a pão e circo, fast food e internet.
Estar na companhia do não tempo da Natureza sem nada mais do que o próprio corpo e sem nada a fazer a não ser escutar e observar dá aos nossos sentidos uma dimensão tão ampla que já não sabemos bem como podiam os nossos ancestrais estar em constante contacto com ela. Mas é aqui, quando a produtividade cessa, quer material quer intelectualmente, que a criatividade enquanto voz do grande Espírito da Natureza emerge com a sua pureza selvagem e a sua pertinência primordial. Há uma força de pertença ao telúrico que não cabe nas palavras.
Tempo para retiro é darmo-nos a possibilidade de não fugir da Alma numa cultura caótica de forma a poder semear, precisamente no seio dessa cultura tão carente e desorientada, toda a nutrição que só da Alma pode brotar.
Fotografia da profunda Mizé Jacinto
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