05
Fev

TRANSFORMAR A DOR EM NUTRIÇÃO

É Candelária: recomeçam as migrações, gradualmente, de pássaros que pelos céus vêm em busca de mais quentes paragens.
É o tempo de ir despertando da hibernação, saindo da toca.
As Águas mais altas começam, devagar, a descongelar nas margens finas.
De dentro da Terra, sementes despertas rompem pelo chão.
Cabras e ovelhas estão parindo e amamentando as suas crias.
Nas tradições pagãs que dividiam o ano em somente duas estações, a Candelária é o princípio gradual da estação Verde, Luminosa e quente; que após a estação escura e fria se revela.
É o momento em que Helena dos Verdes sai da sua gruta oculta no denso bosque e começa a peregrinar: ela não sabe onde vai mas sabe que é tempo de ir e oferecer tantas sementes e histórias da Alma quantas possa, para garantir alimento do corpo e do espírito a todos com quem se cruzar. É tempo de criar caminho, para poder ir e voltar, estar em movimento sem objectivos fixos, antes com atenção a como os nossos hábitos e comportamentos todos os dias nos aproximam ou nos afastam do caminho da Alma e da Verdade que temos para amadurecer.
A Cabra Divina pede-nos que sejamos a Cabra: caminhando por onde parece impossível, porque há sempre forma de ir mais além. A nossa Natureza selvagem é valorosa: a cabra nunca se deixa domesticar, mas sabe estabelecer relações. Guardemos bem os nosso chifres que derrubam barreiras, e as nossas pernas que sabem dar o coice que cria o limite necessário ao respeito. Defendamos o precioso: a cabra cuida e protege as suas crias de forma feroz e feliz. Rir como a cabra que brinca e encontrar alimento por entre as zonas mais áridas. Deixemos que as barbas da sabedoria nos beijem o queixo sob a forma de palavras certeiras. Orientemos os nossos chifres espiralados para as estrelas: para ver o Infinito enraizando os cascos no chão, porque viemos aqui para fazer a ponte entre mundos.
É o princípio da renovação, então caminha, Vai! Porque:
O tempo que esperavas, começa agora.

É tempo de voltar à Semente, pequena e grandiosa, humilde, simples e tão forte.
Cultivar Esperança, Alegria, Fé. Sem elas nada pode crescer.
Esperança: a capacidade de olhar o terrível sem perder de vista o milagroso, mesmo se não sabemos racionalmente qual o caminho da sua materialização. A esperança tem dentro a capacidade de esperar, com paciência e resiliência. A espera da bolota até ser carvalho é longa e só a esperança sustém a sua jornada.
Alegria: para poder caminhar aligeirando o peso dos mais densos fardos. Trazendo o Sol depois da tempestade.
Fé: a capacidade de confiar mesmo sem ver caminho, mesmo no desconhecido, mesmo na noite longa, fria e escura. Manter a chama do Amor acesa, e dá-la, para que nos momentos de maior dúvida, possamos ao oferecer, sentir o seu poder.

Este é um tempo liminar, o meio do Inverno.
Um tempo que nos pede para saber ficar entre lugares, porque o meio do Inverno é já prenúncio de Primavera.
Fascinam-me as estações da Terra, a passagem cíclica da Vida e a mitologia viva que acontece do chão à célula e sempre nos ensina algo mais sobre nós e sobre o que é viver.
Se em Agosto sentimos, no meio do Verão, que é Lammas ou noite do Bom Caminho, o início do declínio da Vida e e o primeiro atravessar para o movimento descendente do ano, que levará ao chão e às cestas da colheita frutos e folhas; sentimos agora o primeiro prenúncio da ascensão.
Se entre Lammas e Samhain, a noite do Bom Caminho e a noite da Boa Morte, aprendemos a decair, aprofundar, abraçar a morte, a decomposição do verde e da Alma e nos é pedido que fiquemos na dignidade das raízes quando toda a estrutura se desnuda, vulnerável, ante a parte mais escura e fria do ano; agora precisamos de aprender a erguer-nos de novo, a escolher viver. Se no meio do Verão aprendemos a atravessar o portal da Vida para a Morte, agora aprendemos a atravessar o portal da morte para o renascimento. Como escolhemos viver? Revelar-nos ao mundo? Cuidar a nossa vitalidade e a vida plena das nossas relações e da Terra?
Na noite de Solstício de Inverno renasce a luz solar, e com ela a centelha de esperança de renovação da Vida.
A humidade das chuvas, a escuridão da Terra e a luz e calor do Sol irão despertar, pela sua acção conjunta, as sementes e flores que garantirão a plenitude da Vida. Porque a planta é a base da Vida animal, sem este reino, nada existe. A pele verde da Terra é a garantia de futuro e sustento.
Nas antigas tradições, considerava-se que a criança recém nascida só estava de facto viva depois de uma quarentena, 40 dias são o tempo entre mundos, onde a Alma pode decidir retornar ao mundo do espírito e deixar o corpo. Volvido esse tempo, a criança decide ficar, encarnar plenamente, ter corpo e carne que da sua Alma se manifestam e assim recebe nome, identidade. Celebra-se o leite materno que é a nutrição que lhe permitiu vingar e viver; tal como se celebram as Águas da chuva que amamentam a semente na Terra.
A Grande Mãe amamenta o Sol menino, para que a sua luz e calor cresçam e generosamente se espalhem para o bem maior de todas as relações que compõem a Vida.

Isto é importante: sem nutrição e confiança, não há qualquer possibilidade de generosamente revelar ao mundo o dom que trazemos dentro. Se o afecto que é alimento da Alma não foi garantido, seguiremos crianças famintas de leite e de colo.
A candelária é aprender o colo, que é ninho e do qual também se sai quando fortalecido para maiores vôos. Na idade adulta, a candelária pede revisão: que relações não podem oferecer colo e nutrição, não têm vida e precisam de ser deixadas?
Que relações nós não podemos nutrir, porque nos esgotam e drenam? Como cultivar reciprocidade e equilíbrio, nas nossas relações?
A reciprocidade, como vemos na roda do ano, é cíclica: não é metade/ metade, mas antes a capacidade de, quem pode dar mais, dá mais quando pode. Quem mais precisa de receber, recebe mais quando precisa e os papéis invertem-se quando as situações se alteram. Assim é com a Luz solar e com as Águas, com o frio e o calor. Existem em distintas e complementares proporções, não sempre em metade/metade e é esse equilíbrio cíclico que garante a continuidade da Vida. Em si, o equilíbrio é um constante processo.

Celebra-se Brigid e Yemanja. Senhoras das Candeias.
Celebra-se o Fogo e a Água: a chama de Brigid é o fogo inextinguível, imperecível. A sua chama jamais se apaga, contudo jamais incendeia. Ela é o fogo da Alma, aquele que, não importa o que nos tenha acontecido, guarda a centelha divina de quem somos e ainda que não o vejamos prevalece. Tal como o Sol, mesmo oculto, prevalece dentro da noite, para se renovar pelo sonho- visão, e retornará.
A chama de Brigid, Braga, é a chama que aquece, que fortalece, que nutre, a chama que não se apaga com a leve brisa nem se inflama com a ventania impulso. É estrutural, equilibrada, sábia, curadora. É o fogo da forja que nos transforma, dissolve e redefine.
É o fogo que nos ensina a transformar todos os lugares frios e húmidos, em nós e no mundo, em lares calorosos, aconchegantes e nutridores.
Isto é importante: aprender a cuidar o fogo, sempre. Aprender a cuidar o Amor, deixando que através do frio, da noite e da tempestade a chama se mantenha acesa: esta chama não ilumina o futura nem garante vida fácil. Esta chama é uma pequena e potente chama, como pequena  e potente é a semente, a bolota que será carvalho, se honrara sua Natureza e passo a passo, dia-a-dia, com paciência e empenho, trilhar o caminho que é seu e que é o melhor para toda a teia da Vida. A chama de Brigid está rodeada de escuridão e ilumina apenas o presente; recorda-nos que a noite dá à luz o dia, que ver o presente é o suficiente, que o futuro é o que forjarmos pela nossa dedicação e labor. O caminho revela-se caminhando, e chegou a hora de dar passos na direcção maior e ir saindo do inverno, devagar, sem pressa, aprendendo a ir e voltar.
Brigid dá-nos o milagre, o dom que trazemos dentro, a semente de Ser. Se não o cuidarmos morrerá, receber um milagre é uma benção, mantê-lo uma responsabilidade. Há que agradecer a possibilidade de semear e cuidar o plantio. Todos aqui viemos para nos transformar.
São também de Brigid, Braga são todas as fontes de Água, e seus são os seios que trazem a chuva pelos céus abertos. Se na Boa Morte, Samhain, aprendemos o valor do lamento e de saber chorar, agora é o alento que nos é pedido.
As lágrimas de Brigid têm de transformar-se no leite dos seus seios, a sua dor em nutrição. E se Brigid pode fazê-lo é porque há caminho, e se há caminho podemos aprende-lo. As Águas de cura são as que dão de beber mesmo se choram. O nosso lamento não pode vincular-nos ao passado, tem de ser força motriz, corrente, maré, da sementeira do presente e sonho do futuro. Transformar a ferida em Amor, a dor em nutrição, revisitar os lugares dentro do coração que carecem ainda desta transformação para que cada gota do nosso Ser recorde ser parte da Mãe das Águas.
Tal como é tempo de saber nutrir o fogo, é tempo de saber conter, sem reter, as Águas. É tempo de saber permitir o fluxo sem criar espaços de afogamento na mágoa, de gradualmente descongelar e fluir. Tempo de abrir o chão para preservar no coração as Águas que na estação seca garantirão a Vida. Tempo de dar de beber à semente.

A arte de amparar a candeia e cuidar as Águas:
É tempo de saber segurar o cântaro, que contém a Água mas também a liberta quando necessário. Tempo de saber que o cântaro precisa de ser levado com cuidado, caso se parta entornará o bem mais precioso. Se estiver partido, há que repara-lo, como o coração.
Tempo de saber amparar a candeia, que não se apaga nem incendeia e por isso, como fogo que é, requer foco, nenhuma chama descuidada é construtiva.

Nas tradições Yorubá celebra-se Yemanjá, Mãe das Águas, pois é ela a Mãe de todos nós e de todos os Orixás. É no Mar que se deita o Sol e é Yemanjá, Mãe Divina, que guarda, acende e aviva a nossa chama da Alma.
No sincretismo cubano a senhora das Candeias é Iansã, revelando a importância do raio para a existência da chama interior, carregando a espada da forja.

Entre a Água e o Fogo somos pois o caldo, a sopa medicinal que no caldeiro de Brigid é mexida e remexida e ainda estamos em preparação. Todos estamos começados, ninguém está acabado. Estamos em processo, na agitação que transforma.

Sejamos como a Água, que é a mais baixa de todas as coisas e ainda assim rompe a pedra.
Sejamos como o Sol, que é a mais alta de todas as coisas e ainda assim beija o chão para acordar a semente.
Sejamos como a Terra, que tanto acolhe como generosamente se abre e oferece. Que a todos cuida como filhos iguais.

Cuida o teu chão: onde vais semear? Lembra que se o teu chão é pedra dura, nada nascerá. Se as relações em que investes são estéreis, como poderás colher a nutrição de que precisas?
Se o chão se pode transformar avança, mas não invistas na luta entre duas naturezas: a pedra é pedra, a Terra fértil é Terra fértil. Planta onde as condições são propícias, no respeito pela natureza do chão e da semente-visão.
Semeia(-te), porque o mundo está carente de alento, de saúde, de amparo, de Vida e as tuas mãos e coração são precisos e preciosos.
Vai, o tempo que esperavas começa agora.

Fotografia da Sublime Mizé Jacinto