XAMANISMO OU OS ECOS VIVOS DOS ESCOMBROS
Sinto-me muitas vezes como se estivesse sentada sobre escombros, olhando as ossadas e trilhos de quem passou antes de mim na linha fina e longa do tempo.
As pedras caídas de uma civilização, tribo, povo são sempre, seguramente as pedras basilares da seguinte. Fico neste paradoxo onde se encontram a perda dolorosa e também a potência da mescla que preserva. Num misto de saudade e de senso de caminho, luto e reverência, ciente de que não vejo tudo mas apenas uma ínfima parte que para mim é já colossal.
Depois, há as palavras que também nos contam destes paradoxos. Xamanismo é um termo oriundo da Sibéria, não era usado em nenhuma outra parte do mundo. Corresponde aos curandeiros do Sol, Tengri, abrangendo a mais vasta região geográfica de culto e o maior tempo ininterrupto. Perdura pelo menos da idade do Bronze até hoje, abrangendo as actuais Russia, Turquia , Mongólia, Sibéria, todos os países da ex- URSS e ainda alguns da Ásia Menor e médio Oriente.
O que tem isto a ver connosco? Nada. Nada a não ser a partilha de 99% de ADN entre siberianos e ibéricos (provada em estudos científicos recentes sobre cadáveres arcaicos e população actual), um trilho arcaico nómada que une as duas regiões e um nome que, à excepção de uma letra, é na verdade o mesmo.
Podemos também encontrar o termo paganismo, os cultos das pessoas camponesas, pagani, segundo os romanos. Com cultos bio-regionais tão diversificados que não houve sequer forma de os compilar quer no tempo quer na zona geográfica. Mesclaram-se astutamente com o catolicismo, tal como acontece ainda hoje com tribos da Amazónia, criando formas novas de transmitir saberes antigos e validando o que de mais puro existe na base de um cristianismo gnóstico, xamânico, mais perto talvez da real visão de Cristo.
Antes disso temos ainda o panteísmo, a noção de que tudo é sagrado, e o pananteísmo, a noção ainda mais ampla de que tudo é sagrado, o que vemos e o que não vemos, o que compreendemos e o que não compreendemos. Diz-se que nasceu na Grécia, porque às vezes confundimos a criação da palavra com a existência do conceito. Mas pode não ser, será antes uma herança. Porque outrora, antes da separação continental, o termo Pangeia designava toda a Terra e não sabemos quem nem quando o disse pela primeira vez, mas sabemos que esta separação foi vivida ao longo de gerações pelos nossos ancestrais longínquos.
Temos também o animismo, que é a palavra que mais me faz sentido: tudo tem Alma, tudo tem Espírito, tudo é sagrado. Sagrado e sangrado são palavras irmãs: tudo tem sangue, seiva, anima. O que vemos e o que não vemos, o que está vivo e o que está em decadência. Porque a Morte é o princípio da Vida, a origem.
Esta breve explicação serve para podermos começar na linha do tempo, da frente para trás. Do que conhecemos ao que nos transcende mas habita de forma muito viva. As palavras são o nosso começo, como cultura, é mais fácil começar por aí.
Mas atenção, que para um(a) animista, a palavra é só uma ponte, não um destino em si. Ela tem por objectivo elucidar para depois desnudar: há que sair da palavra humana para encontrar, abraçar, abarcar, tornar-se a linguagem primal da Natureza viva da qual somos parte intrínseca.
Esse é o desafio: escutar (sem nos perdermos nem prendermos na interpretação) o que está a emergir da Natureza viva, para nada lhe sobrepôr e assim receber dela orientação. Na visão vegetalista do herbalismo arcaico, comum a todos os continentes e lugares, ingerimos plantas para nos limparmos das tantas percepções que definem o nosso eu. Quanto mais nos limpamos e tomamos plantas mais nos esvaziamos e quanto mais nos esvaziamos mais a Floresta nos pode habitar. O objectivo espiritual é que nos tornemos um Bosque em vida e para isso temos que nos despoluir de tudo o que não serve o Bosque.
Aqui, elucido que a toma de plantas não tem a ver exclusivamente com a toma de plantas que estimulam estados ampliados de percepção, mas qualquer planta medicinal individualmente adequada, em contexto de prática dedicada cerimonial.
Perdemos a ligação.
Estamos sentados sobre os escombros.
Os altares caídos de um povo são as pedras das catedrais de outro.
Agora é tempo de retornar ao Templo primeiro, o que é tão amplo e ancestral que transcende qualquer capacidade de construção e imaginação humanas: ouvir o silêncio solene das Pedras, do Bosque e do rio, o uivo maciço do Mar, as Árvores, os fungos, as bactérias, o pó, as estrelas. Há lamentos solenes aqui, se vamos começar um trabalho de xamanismo, animismo, paganismo, panteísmo, herbalismo, vamos pois expor as feridas. Todas elas. Mas vamos passo a passo, com gentileza e reverência, por todas as direções e tempos. Vamos desaprender para que a Floresta nos reeduque e torne aptos para existir: nascer, viver, morrer, transformar-se. Não conheço outro caminho para a cura e a regeneração.
Se a verei?
Claro que não. Mas quem planta uma oliveira sabe que não lhe comerá as azeitonas. Plantamos para quem vem depois. Desistir de o fazer é perder visão, propósito. Até isso temos que relembrar.
Sim, sento-me todos os dias, com humildade, perante os abençoados escombros, ossadas e uivos. Sento-me com a Saudade do Bosque infinito que não vi e com o compromisso de me tornar Bosque e deixar que o Bosque através de mim comunique e aja, porque é maior e mais sábio e só com a Floresta Mãe posso aprender a linguagem do corpo e do Espírito.
Quem tem olhos verá.
Mas a visão é uma prática. Cada vez que queremos o fácil, o rápido, salvar ou ser salvas(os) e nesses lugares não é a visão que praticamos, mas a cegueira e o entorpecimento. Quando desistimos da alegria também não é a visão que praticamos, mas a cegueira que nos imobiliza perante a dor e onde a dor deixa de poder aportar a mestria da paciência e tantos outros tesouros da beleza colateral da transformação que é também o espaço aberto da ferida sensível.
Cuidemos em simplificar tudo: a vida material, intelectual, relacional. Porque temos que ter espaço para que o Bosque nos adentre e para adentrar o Bosque. Se vamos demasiado cheios nada pode entrar, sequer mover-se.
Resgatemos então o vazio, as mãos que laboram, o silêncio que fala, a prática da visão que é um gesto contra-cultural tremendo. Nunca mas nunca esquecer, que é dos escombros compostados que se faz o novo solo.
A força da Hera é maior do que qualquer muro, e o Bosque atravessa sempre, a erva daninha é pioneira em rasgar chão. Sim, perante os escombros, reverência diante do que cai mas também do que se ergue.
Nascemos do Bosque para aprender a ser Bosque.
Fotografia Mizé Jacinto
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